A tentativa de libertação pessoal de Quitéria antecede o movimento universal institucionalizado pela cidadania da mulher. Os primórdios desse programa teriam de ser buscados a partir da segunda metade do século 19, com as descobertas científicas de um mundo que principiava a industrializar-se, com as pregações liberais, com a ascensão lenta do proletariado e da pequena burguesia urbana, mais as revoluções sociais surgidas na esteira de guerras e comoções intestinas.
Datam do início do século 20 os programas de alfabetização e ensino qualificado, na Europa e Estados Unidos, o acesso mais democrático às oportunidades, através do Ensino, o debate permanente de questões filosóficas, políticas e científicas nas universidades e nas páginas de revistas de grande tiragem — e, em conseqüência, o despertar de uma consciência contra a repressão que cerceava a mulher. Sem mencionar páginas de Flaubert, de Tolstói, de Tchekhov, do teatro escandinavo, notadamente o de Strindberg e Ibsen, porque a boa literatura reflete sempre os movimentos mais sutis do tecido social vivo.
Mas o feminismo que há de atribuir-se a Maria Quitéria não tem cores radicais. Se ela, na infância, mais se parecia com um menino, por obra das brincadeiras rudes, quando ficou moça era “a flor de toda aquela zona”. Quitéria, com a sua pele iodada, tornou-se “um dos grandes atrativos do belo sexo dos dias que correm”, disse um biógrafo. Tinha amor pelo namorado Gabriel. Prova disso é que, após glorificar-se na guerra, voltou para os braços dele — Gabriel Pereira Brito, com quem veio a casar e teve uma filha. Nas Efemérides Cachoeiranas, Aristides Milton considerou-a “tão valente quando honesta senhora”.
A donzela de Feira também impressionou a escritora inglesa Maria Graham, mais por sua firmeza, honestidade de propósitos e simplicidade de coração: “Maria de Jesus é iletrada, mas viva. Tem inteligência clara e percepção aguda. Penso que, se a educassem, ela se tornaria uma personalidade notável. Nada se observa de masculino nos seus modos, antes os possui gentis e amáveis”.
O Imperador me põe a condecoração. Tremo toda. Ele entende o que se passa comigo e sorri.
- Parabéns. A senhora é uma heroína. A Pátria lhe será eterna devedora.
- Cumpri apenas meu dever de brasileira - consigo balbuciar em resposta.
O Imperador curva-se e vai retroceder. Faço-lhe um gesto. O homem poderoso se detém.
- Posso ser-lhe útil em algo mais, senhora?
- Quero pedir-lhe um obséquio, um grande obséquio...
- Queira dizer-m’o.
- Quero que o senhor peça perdão, por mim, ao meu velho pai.
- E por que motivo? - indaga o Imperador.
- Porque fui-lhe desobediente, fugi de casa para entrar na guerra - eu lhe digo, toda ruborizada.
O Imperador sorri de leve.
- Está perdoada. Farei o senhor seu pai sabedor do meu perdão.
O Imperador levanta a mão sobre a minha pessoa, em sinal de bênção. ______
(*) Hélio Pólvora, escritor brasileiro, é autor do recente livro A Guerra dos Foguetões Machos, lançado em Portugal pela Orabem Editora.
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