A Fonte Nova e a Seleção Brasileira têm uma relação com sentimentos
dúbios. A história entre os dois não é longa, mas digna de um livro,
curto e marcante. O êxtase fica por conta da invencibilidade nos 11
jogos realizados no principal estádio da Bahia. A consternação pelas
cenas vividas durante a Copa América de 1989. Gols e festa da torcida na
arquibancada de um lado. Protestos, hino vaiado e bandeiras queimadas
do outro.
O passado voltará à tona neste sábado. O Brasil volta à Fonte Nova para
o último jogo da primeira fase da Copa das Confederações. O adversário
será a Itália. Mas até a bola rolar, a segunda parte da história é a
memória mais recente do estádio com a camisa verde-amarela em um jogo
oficial. Salvador havia sido escolhida para ser a sede do Brasil na Copa
América de 1989. Seria. Não foi, porque ficou comprovado que é verdade
quando se diz que a grande paixão do torcedor baiano não é o futebol,
mas seu time de coração.
Tudo aconteceu por causa de um jogo de interesses. Jogo que mexeu com o sentimento do torcedor e teve resultados trágicos.
O Bahia era o campeão brasileiro da época. O título conquistado em cima
do Internacional fez com que alguns jogadores do Tricolor, entre eles
Charles e Bobô, fossem cobrados na Seleção. O pedido foi atendido e,
coincidência ou não, a venda dos ingressos para a competição, que era
baixa, cresceu.
Charles estreou na Seleção com o pé direito. Marcou duas vezes na
goleada de 4 a 1 sobre o Peru, em Fortaleza. Mas, no voo para Salvador,
onde seriam disputados os jogos da primeira fase da Copa América, o
atacante foi cortado pelo técnico Sebastião Lazaroni. A revolta estava
instalada.
Charles, ao centro, ao lado dos também campeões em 88, João Marcelo e Sandro (Foto: divulgação)
Nos dois primeiros jogos da competição, apesar das vaias, vitória sobre
a Venezuela e empate com o Peru. Na penúltima partida, o ápice da
chamada Revolta Popular da Fonte Nova. Hino Nacional vaiado e bandeira
queimada na arquibancada. Centro da polêmica, o jogador não gosta muito
de falar sobre o assunto.
- Foi um momento muito marcante na minha carreira. É claro que foi um
momento chato. Não é bom para ninguém ver seu país sendo vaiado, ver
bandeiras sendo queimadas, incomodou bastante. Para mim, foi um momento
de satisfação por ver o carinho que o torcedor baiano tinha por mim. Por
outro lado, não é bom ter a imagem vinculada a um episódio como aquele –
lamenta Charles, que
encantou até Diego Maradona.
As cenas vistas na Fonte Nova deixaram dirigentes e jogadores
inconformados. O atacante Bebeto chegou a afirmar que tinha vergonha de
ser baiano. Renato Gaúcho chamou a Bahia de “terra de índio”. Como
resposta, recebeu um ovo na cabeça na saída do vestiário. O imbróglio
fez com que o último jogo da primeira fase da competição fosse
transferido para Recife.
Presidente busca jogador na concentração
Presidente do Bahia na época do ocorrido, Paulo Maracajá teve
participação ativa após o corte de Charles da Seleção. O dirigente
decidiu ir à concentração brasileira, em um hotel da capital baiana, e
levou de lá o atacante para disputar uma partida pelo Campeonato Baiano.
Em pouco tempo, Charles saiu da expectativa de jogar uma partida pela
Copa América para voltar a defender o Bahia no estadual.
Aconteceu um fato especial, que era político. Isso fugia ao campo, fugia ao nosso controle"
Cristóvão Borges
O dirigente lamentou o ocorrido, mas preferiu colocar na conta da paixão pelo Bahia.
– Isso foi um desabafo natural do torcedor, porque o Bahia tinha sido
campeão brasileiro e Charles artilheiro. A torcida do Bahia se sentiu
chateada, ofendida, mas foi um gesto de indignação. É claro que o hino
nacional brasileiro e a bandeira são intocáveis. Só em um momento de
paixão para a pessoa fazer isso – amenizou em entrevista ao livro
"Ba-Vi: uma paixão sem limites".
Um dos jogadores presentes naquela Seleção era Cristóvão Borges. Atual
treinador do Bahia, ele não esquece o fato. Sabe que o problema foi
causado pela situação envolvendo Charles, diz que os jogadores se
sentiram incomodados, mas revela que a situação foi gerada por uma
questão política.
- Quando a Seleção joga em Salvador, no Nordeste, é bem recebida. Os
jogadores comentavam isso. Mas naquela época aconteceu um fato especial,
que era político. Isso fugia ao campo, fugia ao nosso controle. É claro
que o jogador não fica satisfeito. Mas isso foi aflorado por uma
questão política, que fugia ao nosso controle – comenta.
Data |
Jogo |
06/07/1969
Amistoso |
Brasil 4 x 0 Bahia |
05/07/1979
Amistoso |
Brasil 1 x 1 Seleção Baiana |
08/07/1981
Amistoso |
Brasil 1 x 0 Espanha |
04/11/1983
C. América |
Brasil 1 x 1 Uruguai |
05/05/1985
Amistoso |
Brasil 2 x1 Argentina |
01/07/1989
C. América |
Brasil 3 x 1 Venezuela |
03/07/1989
C. América |
Brasil 0 x 0 Peru |
07/07/1989
C. América |
Brasil 0 x 0 Colômbia |
11/10/1995
Amistoso |
Brasil 2 x 0 Uruguai |
10/09/1997
Amistoso |
Brasil 4 x 2 Equador |
05/06/1999
Amistoso |
Brasil 2 x 2 Holanda |
Além da questão com o jogador do Bahia, Cristóvão lembra ainda um outro
problema que fez com que os torcedores mudassem de lado.
- Naquela época, o campo da Fonte Nova estava muito ruim, nem dava pra
disputar uma partida. Aí a Seleção não jogou bem, não foi uma partida de
nível. Isso se virou contra a gente, e a torcida começou a vaiar –
conta o treinador do Bahia.
Seleção nunca perdeu na Fonte Nova
Apesar do ocorrido em 1989, o retrospecto da Seleção Brasileira na
Fonte Nova é favorável. A equipe disputou 11 jogos no estádio – no total
foram 18 na Bahia – e não perdeu nenhum (veja no quadro ao lado). A
primeira partida do time canarinho na Fonte aconteceu no dia 6 de julho
de 1969. Na ocasião, o Brasil goleou o Bahia por 4 a 0.
O primeiro duelo internacional foi em 1981. A vítima, a Espanha: 1 a 0
para o Brasil em jogo amistoso. Por outro lado, o estádio traz uma
lembrança amarga também. Sob o comando de Carlos Alberto Parreira, a
seleção perdeu a Copa América de 1983, ao empatar por 1 a 1 com o
Uruguai.
A revolta de 89 marcou o último jogo oficial no estádio. Porém, dez
anos depois, a Seleção esteve na Fonte Nova para um amistoso com a
Holanda, que terminou empatado em 2 a 2. Em 2009, o Brasil esteve de
volta à capital baiana, mas o jogo contra o Chile, pelas Eliminatórias
da Copa do Mundo, foi disputado no estádio de Pituaçu.
Atos são maior mobilização sem líder da história brasileira, dizem analistas.
PROTESTOS SIM, VANDALISMO NÃO.
Na quinta, 1,25 milhão protestaram nas ruas em mais de 100 cidades.
Especialistas ouvidos pelo G1 buscam explicações para manifestações.
Os protestos que se espalharam por quase todos os estados do Brasil na
quinta-feira (20) representaram a mais ampla e numerosa mobilização
popular do país sem liderança definida e, de acordo com dois sociólogos,
uma historiadora, um filósofo, dois antropólogos, um advogado e um juiz
ouvidos pelo
G1, ainda não é possível dizer qual rumo tomarão.
Com mais de 1,25 milhão de pessoas tomando as ruas de mais de 100
cidades, com 300 mil apenas no Rio de Janeiro, os atos comemoraram a
redução da tarifa do transporte coletivo em cidades importantes e
reivindicaram outras melhorias para o país, como o combate à corrupção e
à repressão policial, investimentos na saúde e na educação e a redução
de gastos com os grandes eventos esportivos, Copa e Olimpíada.
PONTOS LEVANTADOS PELOS ANALISTAS
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1- Protestos se destacam pela falta de liderança e pela mobilização pela internet
2- Motivação é insatisfação difusa: contra injustiças, corrupção,
serviços ruins e falta de representatividade de partidos e instituições
3- Governos demoraram para reagir, em alguns casos por não entender a motivação
4- Imagem do Brasil mudou para o mundo
5- Tolerância à violência policial diminuiu
6- Pauta inicial era mais à esquerda e depois incluiu reinvidicações da direita
7- Não é possível prever efeitos a longo prazo
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Para os especialistas, ainda é cedo para prever as consequências de
longo prazo dos atos de quinta. Mas, segundo eles, um caráter inédito
dessa mobilização popular é a insatisfação geral dos brasileiros com as
instituições que os representam e com os partidos políticos que as
comandam.
Segundo Márlon Reis, juiz de direito no Maranhão, cofundador do
Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE) e um dos idealizadores
da Lei da Ficha Limpa, o Brasil mudou nesta semana. "Já tem algo
inédito que é a ida às ruas sem a liderança de instituições
constituídas. Historicamente, foram os partidos que sempre conseguiram
levar pessoas às ruas."
A antropóloga Yvonne Maggie, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e colunista do
G1,
afirmou que "o Brasil se transformou em uma espécie de motim. É
protesto, mas num estilo sem liderança, numa visão até romântica. As
manifestações partem de grupos variados, com várias estratégias”.
As bandeiras e a participação individual, com rejeição a qualquer tipo
de liderança, chamaram a atenção de Yvonne. “Era cada cartaz um post,
cada post um indivíduo. Mas o que mais me impressionou foi a consciência
de que todas as pessoas que estavam lá estão tendo a força do povo
revoltado, eles não querem liderança.”
Segundo a historiadora Maria Aparecida de Aquino, da Universidade de
São Paulo (USP), em termos de quantidade de pessoas na rua aglomeradas, o
movimento maior do Brasil ainda é o das Diretas Já, quando um comício
reuniu um milhão de pessoas apenas no Anhangabaú, em São Paulo. Porém,
ela afirma que o movimento atual é novo no sentido de como se organiza.
"O chamado se faz pela internet e as pessoas aceitam o chamado pela
internet e entram no movimento."
Enquanto governos calculavam prejuízos,
manifestantes avaliavam os protestos e familiares enterravam os dois mortos dos atos de quinta, em
Ribeirão Preto (SP) e
Belém,
novos protestos continuavam a eclodir
nesta sexta-feira (21). Para Frederico Almeida, coordenador do curso de
direito da FGV, pode-se falar em dois movimentos: o primeiro, motivado
pelas tarifas, e um segundo momento, em que mais pessoas aderiram
motivados por uma insatisfação geral, principalmente após a repressão da
polícia. "O que estamos vendo hoje é uma mistura de algum resquício de
um movimento pela tarifa, que em algumas cidades ainda não se resolveu,
com um movimento de insatisfação geral."
Para Claudio Couto, sociólogo e professor da Fundação Getúlio Vargas
(FGV), os episódios registrados nas ruas têm deixado analistas e a
classe política confusos e perplexos, o que, na avaliação dele, fez com
que a presidente Dilma Rousseff não viesse a público na quinta e
deixasse seu pronunciamento apenas para esta sexta.
"Está todo mundo muito perdido, imagino que ela também esteja. Daí
decorre que ela precisa vir a público sabendo o que dizer. Se ela erra o
tom do que diz pode gerar mais ruído ainda. Eu interpretaria esse
silêncio de uma dificuldade de definir exatamente o que deve ser dito a
partir de agora", disse Couto, na tarde desta sexta, antes de o
pronunciamento de Dilma ir ao ar.
Vitórias dos manifestantes
Demanda inspiradora dos atos, a redução da tarifa do transporte público
foi atendida após duas semanas de protestos e confrontos nas ruas por
prefeitos e governadores de
São Paulo, Rio de Janeiro e mais de dez cidades. A persistente pressão popular
fez com que o discurso dos governantes mudasse.
Fernando Haddad e Eduardo Paes, prefeitos de São Paulo e Rio, e Geraldo
Alckmin e Sérgio Cabral, governadores dos dois estados, que no início
do mês descartavam qualquer revogação do reajuste, sob pretextos de que
eles eram tecnicamente impossíveis, recuaram na noite de quarta-feira
(19) e atenderam à demanda.
O engenheiro civil Lúcio Gregori, que foi secretário municipal de
Transporte de São Paulo na gestão da ex-prefeita Luiza Erundina, a
recapitulação das prefeituras mostra que não só a redução era possível.
"Isso é tudo um pouco de catimba, como a gente chama no futebol",
afirmou ele.
"Admitindo que todas as contas de cálculo tarifário estejam certas,
então isso é questão de remanejamento de verbas, coisa corriqueira numa
administração pública. A Prefeitura de São Paulo tem manobra
orçamentária, pode remanejar até 15% da verba. Não pode tirar de coisas
importantes, mas pode tirar, por exemplo, da verba publicitária. O que
não precisa é ameaçar como se fosse uma punição."
Em meio às manifestações, outros governantes decidiram dar mais ouvido
às demandas relacionadas ao transporte e a outras áreas sociais. Em
Macapá e
Belém,
prefeitos aceitaram receber líderes dos protestos para falar sobre as
tarifas. Na capital do Amapá, além da passagem congelada até 2014, o
prefeito prometeu um estudo para implantar uma linha de ônibus 24 horas,
implantação do bilhete único até o fim do ano, aumentar a frota de
ônibus e construir três terminais.
Em São Paulo, nesta sexta-feira o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) anunciou o
financiamento de R$ 2,3 bilhões para a expansão do metrô. No Paraná, o governador Beto Richa
desautorizou o reajuste de 14,61% na conta de luz. No governo federal, o Ministério da Saúde encaminhou ao Congresso, em caráter de urgência, um projeto de lei que
perdoa as dívidas tributárias das Santas Casas com a União.
Alagoas anunciou redução de IPVA para ônibus e ICMS sobre o combustível
para que as empresas mantenham os preços.Em Campo Grande, a Câmara
suspendeu o café da manhã reforçado polêmico que era oferecido aos
vereadores. E, a exemplo da capital paulista, em Maringá (PR) deverá ser
criada uma CPI do transporte coletivo. Apesar das manifestações, não
houve mudanças em alguns estados como Bahia, Ceará, Roraima, Rondônia,
Piauí e Maranhão.
Para Frederico Almeida, da FGV, a meta do Movimento Passe Livre (MPL)
foi atingida porque o grupo desenvolveu uma pauta, constituiu um
interlocutor e trabalhou para conseguir o que queria. Agora, as demais
reivindicações são genéricas, superficiais e não há uma liderança
definida para, por exemplo, definir a meta de quem é contra a corrupção e
responder a essas pessoas. "Há dois riscos desse tipo de movimento mais
difuso. Um é ele se esvaziar porque na verdade é uma conversa de muita
gente falando ao mesmo tem sem um interlocutor definido. O segundo é
isso se acirrar como uma incapacidade de diálogo das manifestações com o
sistema político. Se de repente cria um descolamento total desse
sistema com o povo que está na rua, a gente corre um risco de perder a
nossa democracia.”
A violência da Polícia Militar
Os especialistas afirmam que parte da motivação das centenas de
milhares de pessoas que decidiram aderir aos movimentos foram as imagens
da força excessiva aplicada pela Polícia Militar de São Paulo para
dispersar o ato do dia 13 de junho, que deixou dezenas de feridos,
inclusive mais de dez jornalistas. Após esse protesto, as balas de
borracha foram proibidas nas manifestações populares. Nas manifestações
da última quinta, pelo menos oito cidades tiveram confrontos com a
polícia que deixaram mais de 200 feridos. Nesta sexta, a postura
policial virou alvo de escrutínio em cidades como
Porto Alegre e
Salvador.
"A polícia agiu massacrando manifestantes pacíficos e atuando de forma
indiscriminada", avaliou Claudio Couto, da FGV. "Isso gerou uma reação
que resultou na manifestação de segunda-feira que propiciou o
engrossamento do movimento –o que, a princípio, foi uma grande vitória."
Professor de sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ) e diretor do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS),
Marco Aurelio Santana afirma que a postura do Estado está sendo
questionada, pela forma pouco preparada ou violenta como age.
"Temos de estar todos preocupados. Eles querem tirar pessoas da
mobilização social, isso é um problema para todos porque é a liberdade
que está em jogo. A manifestação tem sido um cartaz contra o aborto,
outro pró-aborto. É preciso entender também que não há democracia sem
essas instituições, se não pode haver uma crise de proporções nunca
vistas. Esse grupo mistura torcidas organizadas, skinheads, verdadeiras
milícias fascistas. Quando você tira um, você tira todo mundo. Nem a
polícia pode agir desta forma.”
A nova geração de protestos
Ricardo Monteagudo, professor de filosofia da Universidade Estadual
Paulista (Unesp) de Marília, chamou a atenção para o papel da internet e
das redes sociais nos protestos.
"Todo mundo foi pego de surpresa: os organizadores, os líderes
políticos, a população em geral. A impressão que dá é que não
conseguíamos mensurar certa insatisfação espalhada no ar e que emergiu
de uma hora para outra.”
As múltiplas e individuais bandeiras também foram a novidade percebida
pelo antropólogo inglês e professor emérito da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (
UFRJ), Peter Fry.
“O interessante é que cada um coloca suas próprias queixas naquilo que
vê. É uma espécie de insatisfação generalizada, como muitos têm dito.
Está tudo em cartazes amadores, escritos à mão”, diz.
“É uma explosão de insatisfação, sem liderança. Nunca vi neste país do
futebol as pessoas abrirem mão da Copa a favor da educação e da saúde.
As pessoas recusando pão e circo pelas coisas que acham mais
importante”, explicou o antropólogo.
SOCIÓLOGO DIZ QUE MOBILIZAÇÃO E ATO DO RIO FORAM HISTÓRICOS
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O ato que reuniu cerca de 300 mil pessoas na noite de quinta-feira
(20), no Centro do Rio, vai ficar na história da cidade, segundo o
sociólogo Ignácio Cano, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(Uerj). Primeiro por agregar participantes de todas as idades, raças,
classes, credos e ideologias. Depois por ter conquistado uma de suas
principais reivindicações. Mas, segundo o sociólogo, principalmente por
demonstrar o peso que as redes sociais têm para o mundo tudo, inclusive o
Rio de Janeiro.
“O Rio já foi palco de outras grandes mobilizações, como a
promovida pelos royalties do petróleo. Mas esta foi de iniciativa dos
jovens e não teve a participação de sindicatos, partidos políticos ou
organismos de classe. E mostrou uma força muito grande, mesmo. O
movimento, que teve como principal bandeira a redução das tarifas de
ônibus, conquistou seu objetivo explícito.” Cano se disse impressionado
com o grau de mobilização e organização obtido pelo ato. E destacou a
tendência mundial de utilização das redes sociais para expressar a
vontade da população.
“Antes era imprescindível a participação de partidos políticos,
organismos como sindicatos, para atingir e atrair tantas pessoas. As
pessoas sozinhas não tinham uma capacidade assim tão grande, não tinham
essa organização. As redes sociais mudaram essa percepção e causaram um
impacto nas pessoas. Elas agora percebem que têm como expressar suas
opiniões, seus desejos, suas reivindicações. Elas têm o direito de se
colocar diante dos fatos”, analisou Cano, dizendo que essa é uma
tendência mundial, que começou no Egito e se alastrou por vários cantos
do mundo.
Para o sociólogo, as depredações e violência são praticadas por
grupos radicais, que querem colocar o movimento sob suspeição.
"São pessoas que escondem o rosto e aproveitam a multidão para
cometer atos criminosos, coisas que não teriam coragem de fazer se
estivessem sozinhas. São pessoas que querem desacreditar o movimento,
que querem desmobilizar a opinião pública, que com atos lamentáveis
deixam a população com medo, o que faz com que elas coloquem os
objetivos do grupo sob suspeita", lamentou o sociólogo.
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Marco Aurelio Santana, também da UFRJ, afirma, porém, que é preciso
também repensar os limites de um movimento com muitas bandeiras,
contraditórias, algumas que se anulam entre si.
"Minha preocupação hoje é com um foco de que há reação compreensível
com o desgaste dos partidos, dos sindicatos, até clichê, quase óbvio.
Minha preocupação é que esse sentimento tenha se tornado tão claro para
grupos para se espancar filiados a alguns partidos."
A reação dos políticos
O protesto em Brasília reuniu cerca de 60 mil pessoas na quinta-feira e passou pelo Palácio do Planalto atrás da presidente
Dilma Rousseff.
A mandatária, porém, deixou o local e sua única atitude pública foi
convocar uma reunião com ministros para a manhã desta sexta-feira (21).
Após o encontro, ela não deu declarações, mesmo após pedidos da
população e
dos parlamentares, e marcou um pronunciamento para a noite.
Para Claudio Couto, da FGV, "ela certamente não está ainda conseguindo saber o que dizer".
Além de Dilma, chefes do Executivo de diversas cidades e estados também
tentam se adaptar ao novo tom de voz da população. Direta ou
indiretamente ligadas aos protestos, alguns projetos de lei e decisões
avançaram ou foram adiadas de acordo com as reivindicações das ruas. Uma
das decisões do Congresso foi adiar a votação da PEC 37, antes agendada
para a semana que vem. A proposta retira poder de investigação criminal
do Ministério Público e é conhecida como "PEC da Impunidade". O projeto
que flexibilizaria a Lei da Ficha Limpa também saiu da pauta.
Para o juiz Márlon Reis, essas duas decisões são efeito imediato dos
movimentos, que também devem servir para que a reforma política seja
fortalecida.
“Isso deve implicar em outras mudanças porque, se os líderes
institucionais forem sábios, em vez de levar suas bandeiras pra dentro
desses movimentos, de tentar encontrar interlocutores para se negociar,
eles vão ter que ouvir o que estão dizendo. A postura dos líderes tem
que ser de humildade. Essas vozes todas traduzem expressões do que pensa
a maioria da sociedade”, afirma.
Segundo ele, esses movimentos são resultado do aumento da exclusão, de uma falência no sistema eleitoral e de representação.
“Os primeiros atos que ocuparam prédios públicos foram voltados ao
parlamento, assembleias, Congresso Nacional. É muito simbólico isso.
Gostaríamos de estar representados. E essa contínua falta de sermos
ouvidos só aumenta a indignação”, afirma.
“Isso veio se acumulando. Teve a escolha do Feliciano, escândalos, CPI
do Cachoeira que foi arquivada com um relatório lacônico. É uma tática
de varrer lixo para debaixo do tapete. E tudo isso na verdade, é o
contrário, isso vai gerando uma energia contida, que uma hora explode.”
Para Frederico Almeida, professor da FGV, os partidos e o sistema
político precisam se reinventar. "Eles têm que abrir canais para
receber essas demandas e dar encaminhamento a elas. Cabe ao sistema
político identificar essas pautas e promover uma agenda, uma discussão
aberta. Agora é o momento que o sistema político tem que reagir. E tá
demorando pra reagir.”
A visão do Brasil no mundo
A proporção que os protestos tomaram, e a violência com que eles foram reprimidos nos primeiros dias, também
chamaram a atenção da imprensa internacional.
Acostumado nos últimos tempos a figurar nos jornais do exterior com
notícias da Copa das Confederações e dos preparativos para a Copa do
Mundo e a Olimpíada de 2016, o Brasil entrou na lista de países com
revoltas populares expressivas e ganhou protestos de apoio em dezenas de
cidades estrangeiras.
Antropólogo inglês e professor emérito da Universidade Federal do Rio
de Janeiro, Peter Fry afirma que os protestos mudaram a visão que o
mundo tem sobre as dificuldades que se enfrentam no país.
"Toda a propaganda do Brasil lá fora era no sentido oposto, de que tudo
estava melhor e bem por aqui. Acho que deve ter mudado. Devem estar se
perguntando como o Brasil vai se justificar."
Segundo ele, o resto do mundo deve ter ficado perplexo com os
acontecimentos das últimas semanas. sobretudo porque o futebol também
foi mencionado pelos cartazes.
"Acho que a frase que pede padrão Fifa para o país é genial, é genial
pedir isso para educação e saúde. Porque tudo o que a Fifa pediu, o país
começou a fazer. Mostra que é uma questão de vontade, que se quer pode
fazer."
Para Maria Aparecida de Aquino, professora da
USP, a repercussão internacional foi a altura do movimento.
"Ela demonstrou o que é que o movimento tem de importante para a
realidade nacional. Eles reagiram muito claramente dizendo ‘é um
movimento significativo, as pessoas precisam estar atentas’. A reação
internacional mostrou mais que a reação interna esse sentido de urgência
que o movimento dá."