Nível hierárquico, nunca antes ocupado por uma mulher, está um abaixo da patente máxima
Tailane Muniztailane.muniz@redebahia.com.br22.05.2019, 05:30:00Atualizado: 22.05.2019, 10:04:17
Na sala em tons brancos que, já à primeira vista, lembra um consultório, poucos detalhes dos trajes da pediatra Ana Fernanda de Borja Gonçalves Dantas, 54 anos, a identificam como médica. A roupa, por si, indica: é uma policial.
As duas estrelas douradas [além da prateada] sobre a placa de platina na parte superior do uniforme, no entanto, anunciam que Fernanda não é só uma das 4.848 do efetivo total de policiais militares, mas a primeira mulher promovida a patente de tenente-coronel da corporação na Bahia. O nível hierárquico, nunca antes ocupado por alguém do sexo feminino, coloca Fernanda a um passo do poder que tem o coronel, ou ‘coronel fechado’, maior patente da Polícia Militar.
Ana Fernanda pertencia a um grupo também restrito da comunidade militar feminina: ela era uma das 35 majores atuantes em territórios baianos, ao lado das policiais Denice Santiago, comandante da Ronda Maria da Penha, Maria Cleudi Milanezi, da Barra, e Patrícia Barbosa, do Rio Vermelho. Se levado em consideração o número total de militares da Bahia (31.788), é como se, para cada 100 policiais, apenas 15 fossem mulheres.
A cerimônia de mudança da patente, realizada no último dia 7 de maio, no Quartel do Comando Geral (QCG), no Largo dos Aflitos, marcou o momento em que a “ficha caiu” para a tenente-coronel, médica, bacharel em Direito e mestranda em Administração Pública.
Ana Fernanda entrou na PM já médica (Foto: Mauro Akin Nassor/CORREIO)
Durante uma entrevista de quase duas horas, no departamento médico do Centro de Operações e Inteligência da Secretaria da Segurança Pública do Estado da Bahia (SSP-BA), no Centro Administrativo (CAB), Ana Fernanda contou ao CORREIO os passos da trajetória de 25 anos de corporação até o momento - quando fez história enquanto mulher das Forças Armadas. É no CAB que ela presta assistência médica aos servidores de todos os polos da segurança, às terças-feiras.
‘Minha maior honra’
Em postura impecável, o olhar manteve-se atento na maior parte do tempo. A voz ecoa baixo e sempre muitos segundos depois de cada pergunta, como quem pensa, ainda que de forma breve, antes de falar. Chega a embargar, no momento em que comenta a promoção.
“Me sinto honrada, pertencer à PM é algo que muito me orgulha. Virar tenente-coronel, ou só coronel, como falamos, não foi um plano, mas foi surgindo. Estou muito feliz com essa promoção e espero que outras mulheres venham, que seja um caminho se abrindo para outras”, comenta, visivelmente emocionada.
Além das cores das estrelas em destaque no uniforme [veja glossário de patentes abaixo], o salário de tenente-coronel também aumenta. Há, ainda, o tratamento com os antigos superiores, cuja patente não precisa mais ser citada. O então chefe, o também tenente-coronel Antônio Silva Magalhães, para Fernanda, contudo, continua ‘coronel Magalhães’.
“Eu ainda não me acostumei que agora já posso chamar ele de forma direta”, explica, aos risos, à vista do coronel. Ana confirma melhoria das finanças, mas não sem acrescentar que, junto com mais dinheiro, vem também mais trabalho. "São 40 horas semanais, sendo às terças-feiras no COI e quartas e quintas no Departamento de Saúde, no Bonfim, onde sou lotada".
Primeira mulher a chegar na segunda patente mais alta, Fernanda garante que nunca sofreu com atitudes machistas (Foto: Mauro Akin Nassor/CORREIO)
“Fernanda entrou médica na PM, ela não passou por um concurso de praças, mas, sim, o 1º concurso de oficiais específicos da área de saúde [dentistas e médicos]. É uma mulher plenamente capacitada a gerir postos. Plenamente capaz e competente”, diz, ao tentar resumir o papel da colega de patente.
Coronel Magalhães explicou que a trajetória até o nível hierárquico que ocupa é longa e nem sempre certa. “O fato de uma pessoa estar na PM há muito tempo nada garante. Também não é possível entrar tenente-coronel, nem major, nem capitão. Exige cursos de capacitação, tem uma questão de merecimento, aptidão e, ainda, número de vagas”.
‘Sem planejar’
Quando diz que não havia um plano para chegar onde chegou, Fernanda contextualiza que o sonho, na verdade, sempre foi ser médica, inspirada por um tio, marido da irmã da mãe, que era dentista do Exército. “Perdi meu pai muito cedo, aos 9 anos, então ele era minha referência. E tudo começou daí”.
Opiniões e visões pessoais, a princípio, não fazem parte da entrevista. Com exatidão de datas, no entanto, comenta os detalhes da vida acadêmica, que começou a se desenhar em 1988, quando, aos 23 anos, se formou em Medicina pela Universidade Federal da Bahia (Ufba). Havia feito dois anos de residência em Pneumologia Infantil, além de Pediatria e UTI pediátrica.
“Fiz o concurso da PM em 1993, e também o do Instituto Médico Legal (IML). Passei nos dois, mas escolhi a PM, onde eu ia poder exercer a minha especialidade em pediatria, quando no IML seria ser legista. Em março de 94, assumi meu cargo, passei sete meses em formação”, disse, ao explicar que, no concurso de praças, são obrigatórios três anos de imersão na Academia de Polícia.
Antes mesmo de virar médica da PM, onde atuou no laboratório da policlínica da corporação, no Colégio da Polícia Militar (CPM), e também chefe do planejamento médico, na Vila Militar, no Bonfim, a tenente-coronel já atuava como pediatra em clínicas e hospitais de pequenos e grandes portes de Salvador, para onde voltou após morar 15 anos, ainda na adolescência, na cidade de São Gonçalo dos Campos, próximo a Feira de Santana.
“Eu atuei como médica até 2007, simultâneo ao meu trabalho na PM. Fui fazendo cursos, me capacitando. Em 2010 eu entrei na faculdade de Direito e formei em 2015, mas não para advogar, mas porque eu queria ter conhecimento em questões de junta médica. Em 2016, aconteceu a oportunidade de fazer o curso de Gestão Estratégica em Segurança Pública, que é o que te habilita para esse último posto”, narrou Fernanda, que entrou na corporação pouco antes de completar os 30 anos de idade estabelecidos como limite pelo concurso.
Embora nunca tenha trabalhado na rua, garante ser bem treinada: 'Estou sempre preparada'(Foto: Mauro Akin Nassor/CORREIO)
Gente como a gente
A tenente-coronel garante que o fato de não ter tido filhos nada tem a ver com a vida “atarefada” dentro da corporação porque, para ela, tudo é possível quando a pessoa quer.
“A gente dá um jeito. Mas eu acredito que tudo acontece quando tem que acontecer, então, eu sou feliz com a vida que eu tenho”, salienta a doutora, que já foi noiva e até pensou em adotar uma criança.
Um problema de saúde impossibilitou que a PM tivesse um filho biológico. O espaço no coração, no entanto, Ana garante que foi devidamente ocupado por um afilhado. A doutora, que escuta MPB, gosta de Carnaval, e é fã dos primórdios da axé music, também dedica o tempo livre às aulas de musculação, às quais ela atribui a diminuição dos danos da hipertensão.
“Tenho uma sobrinha que mora na França, gosto de ir até lá quando posso. Além disso, tenho os amigos da minha turma de Medicina, nós nos reencontramos e costumamos fazer coisas juntos”, acrescenta, ao citar também a mãe, a professora Ana Margarida, 83, com quem mora e “divide a vida”.
“Eu sou uma pessoa normal, mas sempre fui mais formal, meu jeito mesmo. Aquele tipo mais linha dura, então acho que sou a mesma dentro e fora das dependências da PM. Mas me divirto, escuto músicas e gosto de atividades lúdicas, como todo mundo”.
Tem que respeitar
A tenente-coronel disse que, quando se aposentar, vai fazer qualquer coisa, algo como “um curso de Gastronomia, de vinho, sei lá, qualquer coisa assim”, porque a “vida é um sopro, hoje a gente está aqui, amanhã já não está mais”.
Chefe, patrão, ou qualquer outra palavra utilizada para descrever uma superioridade hierárquica sempre foram dispensáveis, garante Ana Fernanda, na hora de se impor diante dos homens com os quais convive porque, frisa, militar que é militar é fiel às regras de hierarquia da corporação, seja o seu superior um homem ou uma mulher.
“Eu sempre me impus e nunca tive esse problema, nunca fui repreendida ou desrespeitada. Nós, mulheres, sempre somos muito cobradas, internamente e externamente e, talvez, isso faça com que a gente se supere”.
Ana Fernanda garante nunca ter sido vítima de machismo com a farda da corporação que tanto a orgulha, mas lembra com graça de um episódio onde, por não ser reconhecida, recebeu um tratamento um tanto quanto comum, com relação ao habitual.
“Costumo chegar cedo na vila e, um dia, o policial me deu bom dia. Ele disse: ‘bom dia, querida’. Aí foi engraçado, mas foi a única vez. Acho que você não pode responder as coisas assim, a ferro e fogo, entendi que ele não me reconheceu, já que eu não estava fardada e isso não foi um problema”.
A resposta ao soldado, no entanto, veio em seguida. Já fardada, a militar se dirigiu ao PM e se apresentou: "Bom dia, eu sou a major Ana Fernanda". “Ele se desculpou, e foi isso. Ali tem pessoas jovens, ainda em formação, é natural”.
Por uma questão “estatutária”, as funções dos militares estão atreladas à hierarquia e “são bem específicas”. Embora nunca tenha participado de um embate com criminosos, na rua, garante que a arma é um acessório que sabe, gosta e costuma utilizar.
“Nunca estive num embate na rua, mas estou pronta. Eu treino sempre que tenho oportunidade. Sempre que tem alguma coisa, na área de armamento e tiro, eu treino. Eu gosto. Fico atrás de colegas instrutores”, reitera.
Ainda que esteja de jaleco branco e com todos os acessórios de direito de um médico, a verdade é que, garante a doutora Ana Fernanda, o peso das três estrelas na base de platina, na altura do ombro, vão sempre lembrar que “para a sociedade quem está ali é uma policial”.
Glossário das patentes
1º Tenente - 2 estrelas prateadas
Capitão - 3 estrelas prateadas
Major - 1 estrela dourada e 2 prateadas
Tenente-coronel (também chamados só de coronel) - 2 estrelas douradas e 1 prateada
Coronel fechado - 3 estrelas douradas
*A mudança de patente envolve vários critérios, incluindo tempo, cursos internos de capacitação, avaliações anuais e "merecimento".
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