Segundo especialistas, todo mundo tem preconceitos. O problema é não enxergá-los, deixar de superá-los e permitir que se tornem atitudes criminosas. Aprenda a reconhecer os seus.
Estabelecer um conceito sobre algo antes mesmo de conhecer o assunto a fundo é uma defesa do ser humano contra experiências potencialmente arriscadas, sejam quais forem. Mas, ao contrário da impressão geral, preconceito e discriminação não são sinônimos.
O preconceito tem a ver com ideias que temos
sobre alguma coisa, concebidas no nosso imaginário a partir do que
aprendemos na escola, da forma de criação, formação cultural, entre
outros fatores. Já discriminação é agir de acordo com esse conceito
pré-concebido em sua mente.
“A discriminação é o preconceito em prática. Quando suas
ideias viram atitude ou você usa uma característica, muitas vezes
arbitrária, para definir a forma de tratamento que dá a alguém”, explica
o diretor do Centro de Pesquisas Quantitativas em Ciências Sociais
(CPEQS) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Jeronimo
Oliveira Muniz.Segundo o professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), José Leon Crochik, em uma cultura que exige respostas rápidas como a nossa, a tendência é todo mundo desenvolver preconceitos.
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Se criar preconceitos é inerente à natureza humana, não superá-los faz com que o indivíduo enxergue o mundo apenas a partir da sua própria visão, muitas vezes incorrendo em desrespeito ao diferente e atitudes criminosas.
Para o chefe do Departamento de Sociologia e Antropologia da UFMG, Andrés Zarankin, é importante não só saber que existem outras visões de mundo, mas também respeitá-las e reconhecê-las como tão válidas quanto as nossas. “Se uma mãe disser que os ciganos, por exemplo, roubam crianças, o filho vai repetir esse preconceito, a menos que uma educação do Estado ou um grupo social permita a ele enxergar o mundo de outra forma”, afirma.
De olho no próprio preconceito
Tornar-se consciente de seus próprios
preconceitos previne que eles se tornem atitudes discriminatórias. Mas
identificar um preconceito em si mesmo é um desafio. Por serem
características socialmente indesejáveis, só notamos estes erros nos
outros.
A analista de sistemas Angélica Silva* se viu sendo
preconceituosa quando descobriu que um de seus amigos de infância ia
casar com uma ex-prostituta. “Fiquei chocada! Toda defensora da moral e
dos bons costumes. Ainda mais por eles terem se conhecido em um
programa. Achava um absurdo ele casar com ela”.Angélica cortou relações com o amigo. Não foi ao casamento e passou a não frequentar mais os mesmos lugares que o casal. Aos poucos, foi se dando conta da própria atitude.
“Ninguém me obrigou a rever meus conceitos sobre eles. Com o tempo caí em mim: o processo de reflexão durou uns seis meses. Simplesmente vi que nada daquilo era da minha conta. Eu não tinha nada a ver com o relacionamento deles e resolvi quebrar essa barreira”, conta.
A analista de sistemas resolveu reencontrar o amigo e se desculpou por sua atitude. Atualmente, eles convivem normalmente. “A meu ver, agi mal. Pedi desculpas, ele aceitou e disse que se colocou no lugar dos amigos e ele próprio não sabia como teria reagido à mesma situação. Achei que ele teve uma grandeza de espírito enorme ao lidar com tudo isso”.
Conviver com o diferente
Por outro lado, todo mundo acaba sendo alvo de
preconceitos em algum momento da vida – o que também ajuda a ignorar, em
nossas próprias atitudes, gestos que não gostaríamos que tivessem
conosco.
De acordo com Andrés Zarankin, do Departamento
de Sociologia e Antropologia da UFMG, o etnocentrismo é um dos
responsáveis por esse comportamento. É preciso pensar como o outro. “É
fundamental ter a experiência de nos colocarmos do outro lado. Enquanto
olharmos o mundo acreditando que não existe outra possibilidade, o
preconceito vai continuar existindo, se fortalecendo e não haverá
mudança”, explica.
Para viver a experiência do outro, começamos
por conviver com ele. Foi o que fez a bióloga Mariana Scabora Cabral,
que se viu afastando sua filha de um menino deficiente físico, de 6
anos, e decidiu fazer diferente.
Ao fazer compras em um hipermercado da capital paulista,
Mariana, que estava acompanhada da filha de quatro meses, encontrou um
menino cadeirante no local, que se encantou com sua bebê.O marido prontamente levou a bebê para perto do garoto, mas ela se sentiu relutante. “Ele estava sentado em um balcão e assim que viu a minha filha quis pegar. Ficou com ela por quase uma hora, beijando e abraçando. Todo contente. E eu tive receio, fiquei com um pouco de medo”, confessa.
Hoje Mariana decidiu mudar e não quer mais que esse tipo de situação aconteça. Prefere que sua filha conviva com o menino, seu vizinho, para aprender que existem pessoas diferentes no mundo e isso é normal. “Ele é um menino muito feliz, veio para ensinar muita gente. Tem uma alegria imensa. Não quero que minha filha tenha uma atitude como a minha”, explica.
A força da lei
A conscientização é uma parte importante do
processo de quebra de estereótipos e preconceitos, mas há também
práticas sociais e legais que devem estar envolvidas. “Tem uma prática
social de não legitimar o outro como sendo inferior ou hierarquicamente
inferior. E tem a prática legal: hoje, há várias leis para punir o
preconceito. Quando existe a lei, as pessoas tomam mais cuidado com
isso. Começam a ver práticas discriminatórias como coisa errada, como
algo que vai ter consequências individuais”, afirma Muniz.
Foi para coibir uma prática discriminatória que a
professora Priscilla Celeste e o consultor Ronald Munk criaram a página
“Preconceito Não é Mal-Entendido”
depois que o vendedor de uma concessionária da BMW, na zona sul do Rio de Janeiro, tentou expulsar o filho do casal, adotado e negro, da loja.
A família tentou obter, sem sucesso, uma retratação extrajudicial. Então resolveu processar a concessionária, pedindo uma retratação e uma indenização, que será doada para uma instituição de combate ao preconceito.
O caso teve repercussão em todo o País e a página do Facebook, com mais de 100 mil seguidores, virou fonte de desabafo, informação e debate sobre o tema.
“Hoje [a página] já nem é mais minha. Mas o que nos moveu foi esse episódio. Comecei a ver as histórias das pessoas, os detalhes que elas contam, a dor de ter sofrido aquilo”, conta Priscilla Celeste, que prefere tornar o espaço virtual um fórum colaborativo, tirando o foco apenas da própria história.
Mas os detalhes mais marcantes no coração da professora são, sem dúvida, os da própria história. De início, os pais pensaram que o filho não tivesse percebido a situação, mas não foi o que aconteceu. “Um mês depois, ele disse para a gente que queria trocar de pele”, relembra. “Ele tem só sete anos. Dói muito. Ele tem um suporte enorme da família e a gente vai caminhando. Não foi a primeira vez e certamente não será a última”. Mas pode ser um acontecimento cada vez menos frequente, se aprendermos a lidar com nossos próprios preconceitos.
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