Era para ser um ponto de passagem para moradores de Salvador e turistas. Dali, a vista é deslumbrante, mas poucos podem apreciar, pois a passarela da Avenida Contorno está tomada por usuários de drogas e traficantes.
De um lado, um dos mais belos visuais de
Salvador, com a Ilha de Itaparica ancorada na Baía de Todos os Santos.
Do outro lado, o intenso movimento de veículos na Avenida Lafayete
Coutinho. No meio, quem ousa passar é obrigado a desviar de montes de
sucata, montes de fezes e montes de pessoas que estão ali por um único
objetivo: fumar crack.
Esse é o cenário da passarela que ladeia parte da
Avenida Contorno, como a Lafayete Coutinho é conhecida. Logo acima da
comunidade da Gamboa, a via de pedestres que vai da entrada do Solar do
Unhão até a chegada no Vale do Canela deveria ser percorrida por
moradores da capital baiana e turistas, mas virou um pátio para consumo
e venda de pedra.
Atrás da mureta, usuária já não se importa de ser vista
“Quer o quê? Massa ou pedra?”, pergunta, sem nenhum
pudor, um homem vestido em trapos que leva na perna direita um fixador
de parafusos para fraturas ósseas. Ele nos abordou sob o viaduto do
Campo Grande, perto do portão inferior do Edifício Morada dos Cardeais. O
homem se oferece para ir buscar “qualquer coisa lá embaixo” (Gamboa),
mas a reposta negativa faz com que ele vire as costas e vá embora, sem
demonstrar preocupação.
Aquele ser humano de feições desfiguradas havia
acabado de cruzar a passarela, onde a imundície impera e o cheiro de
urina é permanente. Com uma microcâmera, também cruzamos aquele caminho
de aproximadamente 800 metros de extensão e 1,8 m de largura. Ali,
passamos por outras dezenas de feições desfiguradas.
Uma delas é a de um senhor que, sentado no chão,
luta para equilibrar o guarda-chuva enquanto tenta queimar a droga num
cachimbo improvisado. Não liga para quem passa caminhando ao seu lado,
muito menos para o fluxo do trânsito atrás da mureta. Num descuido da
chuva, a pedra é acesa, a fumaça inalada e seu olhar se perde.
Homem se divide entre a proteção da chuva e o preparo do cachimbo
Não demora, a mesma cena se repete, mas, sem
guarda-chuva, o jovem tenta se proteger com uma porta de freezer. De
repente, a porta cai e descobre as mãos que seguram o cachimbo.
Agachado, fechado em si mesmo, numa postura comum de quem fuma crack,
ele luta para recompor o abrigo e fumar sem ser incomodado pelo tempo
chuvoso ou qualquer outro fator.
Na passarela do crack, sob sol ou chuva, o consumo
não para. O CORREIO observou a movimentação do local por duas semanas.
Com tempo firme, os usuários transitam com tranquilidade. Se não há o
que fumar, percorrem toda a via, sempre olhando para baixo, rastreando
restos de pedra que ainda possam ser queimados.
Se chove, dali eles não saem. Entocam-se embaixo de
lonas e pedaços de plástico ou aglomeram-se com quem tem guarda-chuva. O
quadro era esse no dia em que cruzamos a passarela e vimos grupos de
até seis pessoas embaixo de um mesmo plástico, misturados à sujeira e às
fezes. Os olhares para os intrusos são sempre desconfiados, mas não
chegam a ameaçar. Alguns fazem menção à venda de drogas, outros
gesticulam com a cabeça, medindo quem tem coragem de passar.
De repente, somos abordados por um jovem. “E aí,
vei, quebra o galho aí pra seu irmão”, diz ele, pedindo “um qualquer”.
Enquanto fala, retorce o rosto e esfrega os dedos uns nos outros, como
se estivesse em abstinência. Ao seu lado, uma mulher prepara o cachimbo
para, quem sabe, aplacar o desejo dos dois.
Os usuários ficam espalhados por toda a extensão da
via, mas há dois pontos de maior concentração. Um fica na altura da Rua
da Gamboa de Cima, onde uma passagem subterrânea permite chegar à
passarela sem atravessar entre os carros. O outro ponto fica um pouco
mais acima.
Ali, misturam-se homens e mulheres, idosos, adultos
novos e velhos, adolescentes e crianças. Uma gestante é vista com
frequência, sem esconder o cachimbo que carrega sempre em mãos. A
disputa pela droga também é intensa. Não é raro presenciar discussões
entre os usuários, que chegam a disputar pedras de crack com agressões
físicas.
Por isso, a passarela virou uma zona quase proibida.
Moradores da região evitam cruzá-la e turistas são logo alertados do
perigo. “Já fui roubado bem ali, saindo do Solar do Unhão. Sorte que meu
computador não estava na mochila”, conta o universitário Mateus
Oliveira.
Até mesmo quem é da área evita enfrentar a
passarela. Moradora da comunidade do Solar do Unhão, vizinha à Gamboa, a
copeira Cilene Muniz desce do Campo Grande utilizando o passeio do
outro lado da rua. Acontece que há trechos sem meio-fio e Cilene tem que
se aventurar entre os veículos. “Faz medo, né? Não mexem comigo porque
sabem que moro aqui, mas prefiro não conviver com isso”, explicou.
Numa
tarde da semana passada, um homem desceu desde o Vale do Canela fazendo
cooper. Percorreu os primeiros metros da passarela e passou por dois
grupos de usuários. De repente, deparou-se com tantas pessoas juntas
fumando crack que optou por saltar para a pista e continuar seu
exercício junto dos carros.
Carros que continuam subindo e descendo pela Avenida
Contorno. Ali abaixo, a baía continua convidativa. Entre uma coisa e
outra, a passarela do crack continua com seu cenário nem tão particular,
de sucata, fezes, pedras queimadas, feições desfiguradas e vidas que se
esfumaçam.
‘Ali precisa de um trabalho social’, diz oficial da PMNa
última terça-feira, policiais da 16ª Companhia da PM foram chamados
para garantir a segurança de funcionários da prefeitura que faziam
reparos na rede elétrica na área da passarela. Com a chegada dos PMs, a
maioria dos usuários sumiu. Tendo participado de muitas operações na
Gamboa, um dos policiais se diz desiludido. “Aqui é histórico. O acesso
dificulta nossa ação. A gente chega, eles descem e avisam aos
traficantes”.
Segundo o coronel Sérgio Baqueiro, comandante do 18º
Batalhão, as operações no local são constantes. Entretanto, ele
argumenta que apenas a polícia não vai mudar o cenário. “Ali precisa de
um trabalho social intenso, que recupere as pessoas e dê emprego”.
Segundo Baqueiro, as operações flagram poucos suspeitos que possam ser
presos por tráfico.
“O esquema mudou. Eles ficam com poucas pedras na
mão. Há informações de que a droga chega pelo mar”, diz. Ainda segundo o
oficial, o crime com mais registros na região é o roubo, cometido pelos
usuários. “Eles atuavam muito no Campo Grande e desciam pra lá, mas
aumentamos o policiamento e vem diminuindo”, afirmou.
Moradores reclamam de assaltos e lembram: ‘Gamboa era tranquila’A
moradora da rua Banco dos Ingleses, entre a Contorno e o Campo Grande -
bem perto da passarela do crack-, franze a testa e olha para o alto.
Estava diante de uma indagação difícil. “Qual foi a última vez que a
senhora viu o pôr do sol naquela passarela?”. Sem se identificar, aos 70
anos, confirmou que, um dia, a Gamboa era como um “quintal” agradável.
“Ah, isso faz tempo, meu filho. Hoje passo longe.
Eles assaltam aqui e descem para se esconder lá embaixo”, denuncia ela,
que mora na Banco dos Ingleses há 28 anos. Outros moradores antigos
também lembraram que a Gamboa foi um lugar tranquilo até o início da
década de 1990. “Veio o tráfico e mudou tudo. O crack chegou e terminou
de acabar”, afirmou um deles.
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