Escritório da organização no Brasil, Ministério Público, políticos, inclusive governistas, e artistas condenam portaria que abranda conceito de escravidão. Segundo Wagner Moura, "é covarde e cruel”
por Vitor Nuzzi, da RBA publicado 19/10/2017 16h52, última modificação 19/10/2017 17h06
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Xico Sá e Wagner Moura: caso para ser levado à corte internacional; portaria é 'cruel, covarde e absurda'
São Paulo – Referência no combate ao trabalho escravo, com políticas iniciadas há mais de 20 anos, o Brasil "corre o risco de interromper essa trajetória de sucesso que o tornou um modelo", afirma o escritório brasileiro da Organização Internacional do Trabalho (OIT), citando a Portaria 1.129, do Ministério do Trabalho. Segundo a organização, os possíveis desdobramentos da norma, que mudou regras e dificulta a caracterização do trabalho escravo, "poderão ser objeto de análise pelo Comitê de Peritos" da OIT.
"A gravidade da situação está no possível enfraquecimento e limitação da efetiva atuação da fiscalização do trabalho, com o consequente aumento da desproteção e vulnerabilidade de uma parcela da população brasileira já muito fragilizada." A entidade afirma ainda que aumenta o risco de o país não alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU no que se refere à erradicação do trabalho análogo ao de escravo (confira, no final do texto, a íntegra da manifestação da OIT).
A portaria assinada na última sexta (13) e publicada na edição de segunda-feira (16) no Diário Oficial da União continua recebendo críticas e ataques. Aparentemente, os únicos satisfeitos com a medida foram empresários e parlamentares da bancada ruralista no Congresso.
Mas mesmo políticos de partidos da base governista ou não alinhados à oposição lamentam a medida, considerada, por exemplo, "desastrosa" pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em cujo governo começaram a atuar os grupos móveis de fiscalização contra o trabalho escravo.
Em rede social, o senador Cristovam Buarque (PPS-DF) considerou a portaria "o gesto mais absurdo do governo". E pediu a demissão do ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira.
Em vídeo divulgado nas redes sociais, o ator Wagner Moura disse que o governo Temer foi colocado ali justamente para retirar direitos. Chamou de "absurda e surreal" a portaria que retira itens básicos da caracterização do trabalho análogo à escravidão. "A situação é muito, muito grave, e nos resta resistir e trabalhar para que essa portaria cruel, covarde e absurda seja revogada", afirmou.
O jornalista e escritor Xico Sá também atacou a medida. "Trocar votos no Congresso pela licença ao trabalho escravo é caso pra ser levado a corte internacional. Crime contra a humanidade", escreveu no Twitter.
"Portaria que redefine o Trabalho Escravo é de uma afronta a todos nós", postou o apresentador Serginho Groisman.
O Ministério Público Federal (MPF), em conjunto com o Ministério Público do Trabalho (MPT), recomendou ao Ministério do Trabalho que revogue a Portaria 1.129, "por vício de ilegalidade", dando prazo de 10 dias para resposta. Ontem (18), a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, recebeu o ministro Ronaldo Nogueira e oficializou o pedido. "A portaria volta a um ponto que a legislação superou há vários anos", disse a chefe do MPF, lembrando que as políticas implementadas até agora visam a impedir a "coisificação" do trabalhador, algo que está na raiz do conceito de escravidão.
Segundo o MPF, a portaria fere a Constituição por "adotar um conceito de trabalho restrito à proteção da liberdade e não da dignidade humana".
Auditores-fiscais estão suspendendo ações "até que a situação seja resolvida", conforme documento encaminhado à secretária de Inspeção do Trabalho, Maria Teresa Pacheco Jensen. Os fiscais citam diversas convenções internacionais que o Brasil se comprometeu a cumprir e lembra dos vários questionamentos legais que a Portaria 1.129 tem recebido, com mudança de conceitos, o que comprometeria o planejamento já estabelecido.
"Tais conceitos, agora todos atrelados ao cerceamento de liberdade, vão de encontro às condições apresentadas na maioria das demandas externas, como as oriundas das próprias vítimas e do Ministério Público do Trabalho, as quais chegam às unidades regionais e à Secretaria de Inspeção do Trabalho; esses novos conceitos estabelecidos pela nova Portaria também vão de encontro às constatações e aos resultados de todo trabalho já demasiadamente consolidado de 22 (vinte e dois) anos de Combate ao Trabalho Análogo ao Escravo da Auditoria Fiscal do Trabalho no Brasil", afirmam no documento chefes da área de inspeção em todo o país.
Também ontem, Ronaldo Nogueira recebeu representantes do Sinait, o sindicato nacional dos auditores-fiscais, e disse que o governo mantém compromisso com o combate ao trabalho escravo. E disse que portaria visava a dar "segurança jurídica". A entidade apontou ilegalidades do texto. "Não vemos outra saída a não ser a sua revogação", afirmou o presidente do Sinait, Carlos Silva. "Apresentamos ao ministro todos os problemas da portaria, desde o conceito do trabalho escravo, da ingerência na Auditoria-Fiscal do Trabalho quanto à questão dos autos de infração e do absurdo da previsão do Boletim de Ocorrência, da retroatividade da aplicação destes conceitos aos autos já lavrados. Mas não vimos nada de novo na postura do ministro."
Leia nota da OIT sobre a portaria do trabalho escravo:
Vinte anos de trajetória no combate à escravidão contemporânea tornaram o Brasil uma referência mundial no tema. Instrumentos e mecanismos foram criados para lidar com a gravidade e complexidade do problema: Comissões Nacional e estaduais, “Lista Suja”, Grupos Especiais de Fiscalização Móvel, Pacto Nacional, indenizações por danos morais coletivos e uma definição conceitual de trabalho escravo moderna e alinhada às Convenções internacionais da OIT n. 29 e 105. Essas conquistas foram reiteradamente reconhecidas pela comunidade internacional e pela Organização das Nações Unidas (ONU) como exemplos de boas práticas, tendo sido inclusive objetos de intercâmbio de experiências em ações de Cooperação Sul-Sul. Além disso, é importante ressaltar que a atitude proativa e transparente do Brasil tem sido um elemento importante para as relações de comércio exterior.
No entanto, com a edição da Portaria n. 1129, de 13/10/2017, o Brasil corre o risco de interromper essa trajetória de sucesso que o tornou um modelo de liderança no combate ao trabalho escravo para a região e para o mundo. Os eventuais desdobramentos desta Portaria poderão ser objeto de análise pelo Comitê de Peritos da Organização Internacional do Trabalho (OIT). A gravidade da situação está no possível enfraquecimento e limitação da efetiva atuação da fiscalização do trabalho, com o consequente aumento da desproteção e vulnerabilidade de uma parcela da população brasileira já muito fragilizada. Além disso, a OIT também lamenta o aumento do risco de que os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU não sejam alcançados no Brasil, no que se refere à erradicação do trabalho análogo ao de escravo.
Algumas recomendações feitas pelo Comitê de Peritos da OIT ao governo brasileiro, por meio de seu Relatório Anual publicado em 2016, são base para essa nota e para o reforço da disposição da OIT em apoiar o país no crescimento econômico com justiça social.
Com relação ao conceito de trabalho escravo, o Comitê recomendou que uma eventual alteração não se constituísse como um obstáculo, na prática, às ações tomadas pelas autoridades competentes para identificar e proteger as vítimas de todas as situações de trabalho forçado, bem como à imposição de penalidades aos perpetradores do crime. O Comitê encorajou o governo brasileiro a consultar as autoridades mais envolvidas na temática, em particular a auditoria fiscal do trabalho, o Ministério Público e a Justiça Trabalhista, na discussão sobre uma possível alteração do conceito. Modificar ou limitar o conceito de submeter uma pessoa a situação análoga à de escravo sem um amplo debate democrático sobre o assunto pode resultar num novo conceito que não caracterize de fato a escravidão contemporânea, diminuindo a efetividade das forças de inspeção e colocando um número muito elevado de pessoas, exploradas e violadas na sua dignidade, em uma posição de desproteção, contribuindo inclusive para o aumento da pobreza em várias regiões do país.
No que concerne à “Lista Suja”, o Comitê ressaltou que o cadastro é uma importante ferramenta para a sociedade, mas também para as empresas, na medida em que se constitui como um mecanismo de monitoramento de cadeias produtivas, amplamente utilizado por importantes setores econômicos preocupados com a efetiva conformidade trabalhista. Dessa maneira, o Comitê encorajou que o governo continuasse tomando todas as medidas necessárias para que a Lista fosse publicada regularmente e da maneira mais transparente possível. É fundamental que a definição da Lista seja um ato técnico e isento, oriundo dos profissionais de fiscalização que possuem conhecimento dos fatos encontrados.
Quanto à inspeção do trabalho, a OIT já louvou o fato de que mais de 50 mil trabalhadores foram resgatados de condições análogas à escravidão nos últimos 20 anos no Brasil, graças à atuação dos Grupos Especiais de Fiscalização Móvel, que são peça fundamental no enfrentamento ao trabalho escravo no país. No seu relatório, o Comitê notou a redução do número de unidades móveis e recomendou ao governo brasileiro a adoção de providências para dotar a inspeção de recursos humanos e financeiros suficientes para o cumprimento de sua missão. A situação de exploração das pessoas infelizmente continua existindo tanto em áreas urbanas quanto rurais. Sendo assim, é fundamental que a inspeção do trabalho siga sendo fortalecida, com recursos humanos e materiais disponíveis e autonomia para a realização de um trabalho efetivo.
Em seu relatório, o Comitê de Peritos também destacou a importância de enfrentar a impunidade e pediu ao governo brasileiro que continuasse apoiando a ação de autoridades envolvidas no enfrentamento ao trabalho escravo, como a fiscalização do trabalho e o Ministério Público do Trabalho, este especialmente pela sua capacidade de impor penalidades financeiras via ações públicas, que são revertidas para a reparação dos danos sofridos pelas vítimas de trabalho escravo.
Por fim, cabe lembrar que o Protocolo da OIT adicional à Convenção n. 29, e sua Recomendação, ambos de 2014 , estabelecem que os governos devem adotar medidas para promover a devida diligência para combater o trabalho escravo, tanto na esfera pública, como na esfera privada. A tendência global claramente aponta para esta direção e seria lamentável ver o país recuar com relação aos instrumentos já estabelecidos, sem substitui-los ou complementá-los por outros que tenham o objetivo de trazer ainda mais proteção aos trabalhadores e trabalhadoras, garantindo assim o respeito à dignidade da pessoa humana.
Com cerca de 25 milhões de vítimas de trabalho forçado no mundo, a OIT destaca a necessidade de reforçar as ações de combate à escravidão em nível nacional, em linha com a meta 8.7 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU: “tomar medidas imediatas e eficazes para erradicar o trabalho forçado, acabar com a escravidão moderna e o tráfico de pessoas, e assegurar a proibição e eliminação das piores formas de trabalho infantil, incluindo recrutamento e utilização de crianças-soldado, e até 2025 acabar com o trabalho infantil em todas as suas formas”.
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