Quais são as causas da epidemia de mortes no país? Parceria entre o G1, o Núcleo de Estudos da Violência da USP e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Monitor da Violência busca as respostas.
Por G1, São Paulo
Uma pessoa morre a cada 8 minutos no Brasil. Por ano, são quase 60 mil homicídios. Mas quais são as causas de toda essa violência? Veja algumas premissas e as respostas para elas, dadas pelos pesquisadores David Marques e Roberta Astolfi, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, e por especialistas do Núcleo de Estudos da Violência da USP.
1) As mortes ocorrem principalmente em regiões tomadas pelo tráfico, que é o que gera a violência que existe hoje no Brasil?
Não existe uma associação direta entre tráfico e violência. São Paulo, por exemplo, estado com a menor taxa de homicídios do Brasil, é também o principal mercado de drogas do país.
Estudos apontam uma relação entre competição e violência. Quando grupos rivais disputam mercados, têm acesso a armas de fogo e lidam com governos politicamente fracos, a violência é maior. É o que ocorre em estados das regiões Norte e Nordeste. Em São Paulo, o mercado é regulamentado por um único grande grupo criminoso.
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2) Grande parte das mortes é resultado de tentativas de roubo?
O percentual de mortes provocadas em assaltos é baixo em relação ao total de homicídios. Em 2015, foram 2.314 casos de roubos seguido de morte, entre 58.467 mortes violentas, o que representa pouco menos do que 4% do total.
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3) A maior parte das vítimas da violência é negra e pobre, resultado da desigualdade social?
De cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras. A chance de um negro ser vítima de homicídio é 23,5% maior que a de pessoas de outras raças/cores. Em estados no Norte e Nordeste, o abismo é ainda mais profundo. Em Sergipe, por exemplo, a taxa de homicídios entre negros é de 73 por 100 mil habitantes, enquanto que a de brancos é de 13 por 100 mil.
A desigualdade social é importante para compreender a concentração, já que os homicídios se concentram em bairros com desvantagens sociais concentradas – com boa parte de moradores negros. O preconceito e o estigma social e racial acabam direcionando contra estes grupos controles excessivos por parte das instituições de segurança e Justiça do estado, resultando muitas vezes em violência policial e aprisionamentos arbitrários.
Além disso, diversos estudos sugerem que o sistema de justiça criminal opera de forma seletiva, priorizando casos que atraem atenção da mídia e cujas vítimas são brancas ou de classe média.
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4) Grande parte das mortes é resultado de brigas entre gangues ou facções, principalmente nas regiões mais periféricas?
Parte das disputas e dos ciclos de vinganças ocorrem muitas vezes entre grupos de jovens armados nos bairros mais violentos do Brasil – como indica a grande quantidade de homicídios com características de execução.
As disputas entre grupos organizados foram importantes para entender fenômenos como no Rio de Janeiro, nos anos 80 e 90. Em São Paulo, contudo, havia formatos distintos, como os justiceiros, vigilantes bancados por comerciantes nos anos 80, que foram importantes no crescimento das mortes na década. As gangues e as facções vão se fortalecer principalmente depois dos anos 2000, dentro dos presídios.
Atualmente, nos estados do Norte e Nordeste, as disputas transcenderam os muros das prisões e são importantes para explicar o crescimento das mortes nos bairros mais violentos.
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5) O feminicídio é um dos principais tipos de mortes violentas no país?
A lei do Feminicídio (13.104/2015) foi sancionada em 2015 e passou a incluir o feminicídio no rol de qualificadoras dos homicídios dolosos justamente como reconhecimento ao fato de que parcela significativa dos homicídios de mulheres é motivada pela condição de gênero. A lei prevê que estas razões se configuram nos casos de violência doméstica e familiar e menosprezo ou discriminação à condição de ser mulher.
Apesar de ainda não haver estatísticas exatas sobre o fenômeno no país, dados do Mapa da Violência indicam que 50% das mulheres vítimas de homicídio foram mortas por um familiar, companheiro ou ex-companheiro.
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6) Grande parte das mortes ocorre por ação da própria polícia, por despreparo ou excesso, e podem ser evitadas?
No Brasil, foram registradas 3.320 mortes em decorrência de intervenção policial (no serviço ou fora de serviço) em 2015, o que torna a polícia brasileira a mais violenta do mundo. Considerando mortes por 100 mil habitantes, as mais violentas nesse ano foram as polícias do Amapá (5), Rio de Janeiro (3,9) e Alagoas. São Paulo, que registra 2,2 mortos por 100 mil, foi proporcionalmente onde a polícia mais matou em relação aos homicídios em geral, quase 20% do total de mortes violentas.
Apesar da péssima qualidade na investigação sobre esses casos, a elevada taxa de letalidade é um indicador da baixa capacidade de planejamento e de inteligência policial.
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7) O grande número de mortes no país se deve à extensão territorial brasileira?
Não. O Brasil é o quinto país em extensão territorial do mundo, mas tem mais homicídios que os quatro primeiros – Rússia, Canadá, China e Estados Unidos.
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8) A superlotação das prisões brasileiras causa grande parte das mortes, porque os presídios estão lotados com membros do crime organizado?
O Brasil registrou 379 mortes violentas em 2016 dentro dos presídios, o que significa uma pequena parte do total de mortes no Brasil. Neste ano, considerando só os massacres no Amazonas (56), Rio Grande do Norte (26) e Roraima (33), foram 115 mortos. Apesar de elevados, são uma pequena parte do total de homicídios no Brasil. Os dados sobre mortes em prisões são difíceis de obter e às vezes são mascarados – o que parece um suicídio pode ser um homicídio. A superlotação dos presídios, no entanto, tem contribuído para o fortalecimento das gangues prisionais e para a organização do crime.
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9) Os linchamentos podem ser considerados entre as situações que mais acarretam mortes no país?
É difícil quantificar os casos de linchamentos no Brasil. Mesmo assim, pode-se afirmar que o número é bem menor que o total de homicídios. Pesquisa feita por Ariadne Natal, do NEV-USP, sobre os registros de linchamentos em 30 anos (1980-2009) publicados na imprensa brasileira aponta que, na década de 1980, os casos de linchamento resultavam em mortes na maioria das vezes. Porém, a partir da década de 1990, a polícia passou a atender mais rapidamente casos de linchamento, diminuindo a letalidade.
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10) A impunidade contribui para o aumento de mortes a cada ano no país?
Segundo pesquisa realizada e publicada pelo coordenador do NEV-USP, Sérgio Adorno, é possível dizer em linhas gerais que sim, que a impunidade contribui para o aumento de mortes no país. Diz o pesquisador: “Ao preterir o maciço volume de ocorrências com autoria desconhecida (nos processos de investigação de crimes), agentes e agências policiais contribuem para produzir elevadas taxas de impunidade penal. E, como revelam os resultados da pesquisa, têm elevada responsabilidade institucional nesse processo”.
Outro fato que influencia a impunidade e, consequentemente, o aumento de mortes é a morosidade da justiça penal para os casos de homicídios. Pesquisa em cinco capitais brasileiras constata que um caso de homicídio leva, em média, 8,6 anos para ser julgado.
Ou seja, o Brasil vive um paradoxo em termos de punição. Se, por um lado, tem uma das maiores populações prisionais do planeta, por outro, tem um nível de punição muito intensa sobre alguns tipos de crimes enquanto outros tipos de crimes não estão no radar do sistema de justiça criminal. Apesar de o crime de homicídio contar com os melhores indicadores de esclarecimento, a maior parte da população prisional não está encarcerada por crimes contra a vida, mas sim por delitos relacionados a drogas.
Há indícios de que políticas de segurança enfocadas em retirar das ruas homicidas contumazes tem efeito determinante sobre a taxa de homicídio. É o que sugere o caso do Pacto Pela Vida em Pernambuco, que tinha esta como uma das principais diretrizes da política de segurança pública e alcançou bastante sucesso na redução dos homicídios dolosos.
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11) Há mais mortes nas capitais que nas cidades do interior?
Desde a década de 1970, o crescimento dos homicídios no Brasil era um fenômeno observado tipicamente nas grandes cidades, relacionado aos processos de urbanização e industrialização. As regiões metropolitanas do Rio de Janeiro e de São Paulo, por exemplo, viram suas taxas atingirem o pico no final da década de 1990, mas depois iniciaram uma curva consistente de queda considerável, mesmo com algumas oscilações entre um ano e outro. Comparando-se todas as capitais do país, entre 2005 e 2015, as taxas de homicídio caíram em 11 delas, mas aumentaram em 16.
Em outro sentido, verifica-se mais recentemente um aumento das taxas de homicídios em muitas cidades menores e cidades do interior, sobretudo nas regiões Norte e Nordeste. Esse aumento aconteceu de forma concomitante ao crescimento econômico, e uma explicação possível é que a maior circulação de dinheiro, em especial em pequenas cidades do Norte e Nordeste, tornou viável a expansão dos mercados locais de drogas ilícitas, o que pode motivar disputas violentas. Outra modalidade de aumento de violência letal pode ser observada em cidades como Altamira, no Pará, que observou uma explosão populacional repentina com a construção da usina de Girau, sem que houvesse qualquer preparo da capacidade administrativa local para atender às novas demandas por infraestrutura e serviços.
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12) O desarmamento contribui para as mortes porque as pessoas não possuem armas para se defender?
Estudo produzido pelo Ipea apresenta evidências de que a política de desarmamento praticada no estado de São Paulo foi um dos fatores determinantes para a diminuição nos crimes violentos, em particular nos homicídios. O mesmo estudo mostra que, a cada 1% na proliferação de armas de fogo, há um aumento de 2% dos homicídios.
No ano de 2016, mais de 50 pesquisadores brasileiros assinaram um manifesto contra a revogação do Estatuto do Desarmamento, apresentando uma série de evidências científicas nacionais e internacionais que indicam que uma maior quantidade de armas de fogo está associada a uma maior incidência de homicídios com arma de fogo.
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13) A entrada de armas e drogas pelas fronteiras brasileiras contribuem para o aumento da violência, gerando mais mortes violentas?
Segundo estudo do Ipea, quanto mais armas em circulação, maior o número de crimes, especialmente homicídios. Contudo, estudos sobre as armas de fogo apreendidas no Brasil revelam em sua maior parte que estas armas são de fabricação nacional.
Estudos também apontam para a relação entre competição e violência. Quando grupos rivais disputam mercados e têm acesso a armas de fogo, a violência é maior.
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14) Quanto maior a população de um país, maior o número de mortes violentas?
O tamanho da população precisa ser levado em consideração para comparar o fenômeno dos homicídios entre diferentes países. Rússia e Japão são, respectivamente, o 9º e o 10º países em tamanho de população. Em 2014 a Rússia contabilizou 17.414 homicídios e, no mesmo ano, o Japão registrou apenas 395. Nesse exemplo, como a diferença é muito marcante, não é difícil intuir que a Rússia padece de maior violência homicida do que o Japão. Mas se a comparação for da Rússia com a Índia, fica mais complicado. A Índia tem a segunda maior população do mundo e em 2014 registrou 41.623 homicídios. A melhor forma de realizar comparações dos níveis de violência homicida entre países é calcular a taxa por 100 mil habitantes. Para calcular a taxa, multiplica-se o número absoluto de homicídios por 100 mil e divide-se pela população. Se for feito isso, há uma taxa de 12,14 por 100 mil habitantes na Rússia e de 3,21 por 100 mil habitantes na Índia. Todos esses dados são do Estudo Global de Homicídios do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes. Neste estudo, em 2014, o Brasil está na décima primeira posição entre as maiores taxas de homicídio do mundo, praticamente empatado com a Colômbia na décima posição.
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15) Quando uma pessoa é ferida em um assalto e vai para o hospital com vida, morrendo dias depois, essa morte é contabilizada como morte a esclarecer e não entra na estatística de homicídios?
No Código Penal brasileiro, roubo seguido de morte é um “latrocínio” e, como tal, não é contabilizado entre os homicídios. É por isso que muitas organizações que publicam estatísticas utilizam, além dos homicídios, categorias que agregam ambos os fenômenos como Crimes Violentos Letais Intencionais ou Mortes Violentas Intencionais (como é utilizado no Anuário Brasileiro de Segurança Pública).
De qualquer modo, quando uma morte ocorre depois da confecção do boletim de ocorrência, geralmente quando a vítima está no hospital, é necessário realizar procedimentos de atualização dos boletins. Além de atualizar os boletins, é preciso atualizar as estatísticas já publicadas. Essa é uma questão bastante sensível para a contabilidade de homicídios no país, e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em uma pesquisa publicada em 2015, encontrou que pouco mais de 50% dos órgãos responsáveis pelas estatísticas nas unidades da federação realizavam esse procedimento.
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16) A maioria das mortes ocorre em locais sem iluminação pública ou presença da Polícia Militar?
Não há estudos que verifiquem empiricamente a relação entre iluminação pública e ocorrência de homicídios. Os estudos sugerem, no entanto, que a falta de iluminação em locais públicos está associada à sensação de insegurança e à percepção de abandono por parte das autoridades, podendo contribuir com a prática de alguns tipos de delitos como roubos e estupros.
Um estudo sobre a cidade de São Paulo indicou que distritos com menores relações de efetivo policial por habitante apresentam maior proporção de crimes de autoria desconhecida. Contudo, outro estudo aponta que o aumento do efetivo policial pode estar relacionado à redução de crimes de oportunidade e crimes contra o patrimônio, sem, todavia, identificar qualquer relação com a redução de crimes contra a vida.
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17) A violência no Brasil mata muito menos pessoas que doenças causadas pela falta de saneamento básico e estrutura hospitalar?
Segundo o estudo Global Acceleration Action for the Health of Adolescents (2017), da OMS, o Brasil encontra-se no grupo de países no qual as principais causas de mortes entre adolescentes de 10 a 15 anos são, nesta ordem: violência interpessoal, acidentes de trânsito, afogamento, leucemia e infecções respiratórias. Já jovens na faixa de 15 a 19 anos morrem em decorrência de violência interpessoal, acidentes de trânsito, suicídio, afogamento e infecções respiratórias.
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18) Muito mais pessoas morrem em acidentes de trânsito que em ocorrências de roubo?
O percentual de mortes provocadas em assaltos é baixo em comparação com os acidentes de trânsito. Em 2015, foram 2.314 casos de roubos seguidos de morte (latrocínios). Já as mortes por acidentes de trânsito somaram 39.543 no mesmo ano.
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19) A maioria das mortes ocorre por motivos banais?
Na pesquisa de mestrado do pesquisador do NEV Renan Theodoro, a palavra “banalidade” é usada como uma justificativa recorrente aplicada à mortes violentas, aliada ao alto índice de homicídios registrados na cidade de São Paulo entre os anos 1990 e 2000. A pesquisa se debruça sobre o que a Justiça entende como “banalidade”. “Identificou-se que os conceitos banais e fúteis são manipulados a fim de qualificar tipos aceitáveis de sensibilidade e emoções sociais envolvidos em crimes violentos”, escreve Renan no resumo da dissertação que, ao final, entre outras conclusões, aponta que “as hostilidades são consequência de brigas ou desafios públicos; isso significa que o conflito surge como uma forma de estabelecer limites e fronteiras para as autoridades sociais". "Neste cenário, tem-se como resultado que a desconfiança interpessoal parece sustentar o uso da violência.”
Dados produzidos pela Estratégia Nacional de Segurança Pública indicam, no entanto, que apenas 8% dos homicídios são esclarecidos no Brasil. Como a taxa de resolução destes crimes é muito baixa, torna-se difícil apurar as motivações e autorias dos homicídios.
Um estudo produzido pelo Ministério da Justiça a partir dos inquéritos policiais indicou como principais macrocausas dos homicídios no país: disponibilidade de armas de fogo, presença de gangues e drogas, violência patrimonial, violência interpessoal, violência doméstica, conflitos entre a polícia e cidadãos, dentre outros.
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20) No Brasil, há uma subnotificação das estatísticas de homicídios, ou seja, há muito mais mortes que o contabilizado?
Há duas principais fontes oficiais de contabilização de homicídios no Brasil: o Sistema de Informação de Mortalidade, SIM/DATASUS, e a contabilização dos boletins de ocorrências produzidos pela Polícia Civil de cada UF. O SIM/DATASUS utiliza a Classificação Internacional de Doenças CID-10. Há uma categoria chamada “Mortes por causa indeterminada”, que é utilizada quando o exame pericial é inconclusivo. No Brasil, em 2009, esse indicador alcançou um patamar de 9,6%, contra um máximo de 1% em países desenvolvidos. O mais provável é que uma parte dessas mortes assim classificadas sejam na verdade homicídios (embora seja improvável que todas o sejam). Esse indicador tem melhorado no país ao longo dos anos, mas ainda não atingiu um patamar satisfatório.
Na área da segurança pública, “morte a esclarecer” e “morte por causa indeterminada" são terminologias utilizadas nos boletins de ocorrência, feitos pela Polícia Civil, quando não é possível saber, de imediato, se foi uma morte natural (quando não há sinais externos de violência, por exemplo) ou se foi um suicídio (quando há violência, mas não é possível saber se foi auto infligida). Cada unidade da federação tem um procedimento diferente de contabilizar ou não essas mortes nas estatísticas de homicídio, bem como têm procedimentos diferentes de atualização dos boletins quando o andamento do inquérito esclarece se a ocorrência foi ou não homicídio. A classificação de uma proporção muito grande de ocorrências em categorias como “encontro de cadáver”, “encontro de ossada”, “morte a esclarecer” e assim por diante é um indicador de subnotificação. Além disso, é preciso estar atento para quando o Estado publica o número de ocorrências, mas não o número de vítimas.
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