De Itapuã aos Alagados, da Ladeira do Taboão ao Corredor da Vitória, a cidade continua cheia de história para contar
Talvez ninguém tenha entendido tanto Salvador quanto Jorge Amado. Ali era barril, pai. Prova disso é o livro Bahia de Todos os Santos: Guia de Ruas e Mistérios, publicado pela primeira vez em 1945, no melhor estilo crônica da vida real soteropolitana, com sua gente brocadora e seus lugares que tanto representam a cultura e a rotina do povo. Para quê melhor?
Pois, se Jorge definiu baianidade, o CORREIO voltou atrás de 10 dos lugares descritos pelo homem no livro que é o guia da Bahia, só para ver se eles ainda continuam cheios de graça e são a cara de Salvador mesmo, como o escritor, que nos deixou em 2001, acreditava.
1. Pelourinho
Pode ter quem pergunte: ainda tem graça botar o Pelourinho numa lista sobre Salvador? Mas repare... motivo para isso deve ter, né? Armengue que não é. Jorge dizia que o Pelourinho era o “coração da vida popular baiana”. Tem o Terreiro de Jesus, o Paço, o Carmo... E o próprio Largo do Pelourinho.
É nesse último que as pedras do calçamento contam cada história... Amado diz que muito sangue correu sobre elas, tanto que o tempo não conseguiu levar embora. “Por aqui, passa a vida inteira da Bahia, sua humanidade, a melhor e a mais sofrida”, escreveu. No meio disso tudo, duas igrejas assistem a tudo que acontece, na cocó: a do Rosário dos Pretos e a do Paço.
De hoooje que é assim... Só que, hoje mesmo, ao invés de escravos sendo castigados, há turistas e guias que passam a torto e a direita por ali, contando causos. “O Pelourinho ainda é o primeiro lugar, nos procurados dos turistas. Tem gente que diz 'eu não acredito que estou no Pelourinho'. As pessoas se emocionam ainda nos dias de hoje”, conta a presidente do Sindicato dos Guias de Turismo (Singtur), Silvana Rós.
Seja lá como for, Jorge estava certo. O Pelourinho ainda tem de um tudo – da baiana de acarajé ao fazedor de atabaque, do artesão ao capoeirista, do turista gringo ao esmoler. E, aqui para nós, continua sendo o coração da vida popular.
Ladeira do Taboão (Foto: Marina Silva)
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2. Ladeira do Taboão
Beleza não é lá o forte do Taboão. Jorge já dizia que ali era cheio de escadas escuras, “de onde chega um bafo de bolor, de coisas velhas e sujas, de urina, de falta de limpeza”. É verdade... Mas o Taboão tem sua graça. O Taboão – seja chamado de Ladeira do Taboão ou de Rua do Tabão – é dono de um comércio forte, que não podia ter encontrado casa melhor: lojas de couro, material para estofados, loja de tecidos...
No meio disso, um formigueiro de gente subia e descia, anotou Jorge. O comerciante José Augusto César está lá há 48 anos – hoje, na Mercouro, mas, ao longo da vida, já passou por outras três. “Mas antes, aqui, se abrisse até domingo, feriado, vendia. Agora, até em dia de semana, não é tanto”, lamenta.
O arerê de gente diminuiu, em 2016, mas ainda tem gente que vive nesse sobe e desce. Gente que, como a contadora Cleudes Borges, 54 anos, “só compra no Taboão”. Só de estar lá, ela já sente baianidade. “Estava vendo que o pessoal não traz turista para o Taboão, mas é uma pena. Aqui é totalmente baianidade. Só precisava ser mais preservado”, queixa-se.
Corredor da Vitória (Foto: Marina Silva)
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3. Corredor da Vitória
Rua de barão, mas que também tem espaço para quem não tem tanto tutu assim. É mesmo uma das mais belas ruas do Brasil, dizia o escritor. “Transforma-se em incrível e hostil floresta de arranha-céus, de brutal cimento armado”.
Jorge Amado era tão massa que conseguiu prever que os grandes solares, que antes tomavam conta da avenida, seriam comidos pela especulação imobiliária. “Meu pai e minha mãe contam como eram os casarões na década de 1960, que tocava o sino no portão e você ia caminhando até a casa. Acho que na época do livro, ainda havia mais baianidade, porque baianidade é regional. Acho que aqui, ela está nos museus, porque, na arquitetura mesmo, como previa Jorge Amado, perdeu identidade”, opina o professor Evandro Ramos, 39, estudante do Instituto Goethe, ali no Corredor.
Mas Jorge apostou que a maioria desapareceria, ficando só o que abriga o Museu Costa Pinto. Jorge não era pouca merda, não, mas não era Deus. O Solar Cunha Guedes continua lá também, entre um e outro solar perdido.
Rampa do Mercado Modelo (Foto: Marina Silva)
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4. A Rampa do Mercado
“Um dos lugares mais fascinantes do mundo. Ali arribam os saveiros vindos de Itaparica e do Recôncavo, carregados de frutas”, contava Jorge, sobre a rampa que ficava ao lado do antigo Mercado Modelo. Mas acabou o milho, acabou a pipoca, acabaram-se os saveiros trazendo uma renca de frutas de lugares como Maragogipe e da Ilha de Itaparica e que seriam distribuídas nas feirinhas nos bairros. “A manga era a melhor, principalmente a espada”, lembra o comerciante Manuel Salvador, 62.
Hoje, só pescadores puxam, na rampa, as redes com os peixes que pescam ali na área do Comércio. Desde 1964, Manuel, mais conhecido como Barbudo, é um desses pescadores. E “esses” são cada vez menos, viu? “Você via mais de 100 homens aqui antes. Agora, só tem eu e um ou outro. Tá se perdendo. Quem viu, viu. Quem não viu, não vai ver mais”. Ainda assim, a rampa vai ser sempre uma marca de Salvador. “A baianidade também é isso aqui, porque a pescaria é arte”.
Rua Chile (Foto: Marina Silva)
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5. Rua Chile
Se os barões viviam no Corredor da Vitória, era na Rua Chile que faziam compras. E passeavam, olhavam vitrines, tomavam um chá das cinco... Ficavam até competindo pra ver quem se amostrava mais. Mas não eram só eles, não. Todo mundo ia para lá. Até quem não tem tanta bufunfa no banco assim. “O turista deseja encontrar alguém na Bahia e não possui o seu endereço? Deve ir à Rua Chile às cinco horas da tarde e com certeza encontrará a pessoa que procura”, garantia Jorge Amado.
Onde hoje fica a Fotocolor, especializada em produtos para fotografia, ficava a Confeitaria Chile. “Às 17h, as senhoras vinham com maridos, empresários, políticos, fazendeiros, para o chá das cinco”, conta o proprietário, Mário Ferreira Filho, 66, listando outras importantes lojas da época, como as de departamento Sloper e Duas Américas. “Era a rua mais famosa da cidade até os anos 1980, porque não existiam os shoppings”.
Grandes hotéis, como o tradicional Palace Hotel, dominavam. Esse, por sinal, deve voltar a funcionar no final do semestre, depois de dez anos fechado, com o novo nome de Fera Palace Hotel. O Colonial Chile é um dos que resiste até hoje.
“Aqui, agora é mais uma rua comercial do que turística, que é o que deveria ser. Fim da tarde, começa a fechar tudo. Quando dá 19h, você já vê uma coisa totalmente morta. Para um hotel, é muito ruim, porque os”, diz a governanta do estabelecimento, Rosângela Esteves, 47, que diz que, apesar disso, a taxa de ocupação é boa. No dia em que conversou com o CORREIO, 32 dos 33 quartos tinham hóspedes. O recepcionista Jameson Cerqueira, 30, faz coro: “Aqui precisa se revitalizar, porque a baianidade da Rua Chile é estar perto de onde começou o Brasil”.
6. Orla Marítima
“A cidade se estende no sentido das praias, cresce na orla marítima, hoje plena de restaurantes, boates, clubes, bares e, belas, magníficas residências”. Se isso era verdade em 1977, não podia ser mais certo em 2016. No Rio Vermelho, onde Jorge Amado escolheu para viver com a família, então...
Se você quer dançar, comer água ou comer comida de fato, talvez não tenha lugar melhor. “Rio Vermelho tem vida, tem movimento de segunda a segunda”, comemora o técnico em Enfermagem Romilson Luiz, 45, que vive lá desde que nasceu e faz parte da Colônia de Pescadores Z1.
Muito da baianidade do bairro, para ele, é culpa do próprio Jorge. “Jorge Amado fez com que as pessoas de fora buscassem o Rio Vermelho. Quando você tá num local e diz que é bom, num tem que num queira vir provar se é bom, né?”.
Itapuã (Foto: Evandro Veiga)
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7. Itapuã
Itapuã mereceu bem mais que uma tarde do tempo de Jorge Amado. Não só dele, claro, como de Dorival Caymmi e de Vinicius de Moraes, “que gostava de beber um uísque na praça” que leva o nome do outro. Na época, também era lugar de barão morar. Era tanto que Jorge– que teve até casa na Pedra do Sal – até entrava no debate: quem era o soberano de Itapuã?
Pois, hoje, o povo não tem dúvida. São os três mesmo, rapaz. “Jorge Amado! É ele que nos inspira”, diz a monitora de informática Iranilde Reis, 36. Ela perde até a conta de quantas vezes por semana sai do Bairro da Paz para aproveitar a paisagem de Itapuã. “E hoje tô aqui de novo, com minha irmã, para desfrutar um pouquinho de tudo isso que simboliza a baianidade”.
A vendedora ambulante Lene Bispo, 45, mora em Itapuã há apenas 11 meses, vinda de São Sebastião do Passé, mas também já botou moral e elegeu os soberanos do bairro também. Primeiro, Caymmi, que dá nome à praça onde ela botou seu ponto de venda de lanches. “Vinicius e Jorge Amado também. Tudo aqui é eles, menina. Os meninos chegam pra beijar aquela careca (o busto do cantor), abraçar, tirar foto. Eles que são os soberanos de Itapuã”, diz ela. Pois, se o povo diz... Tá dito.
Lagoa do Abaeté (Foto: Evandro Veiga)
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8. Lagoa do Abaeté
A lagoa escura toda arrodeada de areia branca já não é um dos pontos turísticos mais frequentados da cidade ‘dos tempos’. Mas ela ainda é bela em qualquer hora do dia ou da noite, como dizia o escritor. “Ali reside Euá, orixá de águas aparentemente mansas, em verdade perigosas”.
E ainda representa Salvador, representa a Bahia. Pelo menos, é nisso que acreditam as irmãs Valdelice, 57, e Maria Isabel Paixão, 45, ambas técnicas em modelagem. “Pode até ter decaído, mas isso não muda. Uma vez príncipe, nunca perde a majestade”, garantiam. É, talvez a soberana de Itapuã seja ela, a Lagoa...
Alagados (Foto: Arisson Marinho)
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9. Os Alagados
A paisagem conhecida por Jorge Amado mudou um pouco. “Com o lixo, com a lama e com a necessidade de habitar, com sua capacidade de viver, de se sobrepor à morte, o povo constrói bairros inteiros, ergue suas casas na terra ou no mar”, escreveu.
Hoje, não há mais palafitas. Em janeiro do ano passado, um incêndio destruiu cerca de 100 moradias na comunidade da Mangueira – as únicas que sobravam. “Hoje eu digo que tô na nova Orla, acho que isso aqui é um paraíso comparado”, diz a comerciante Maria Luiza Pereira, 55 anos. De fato, agora ela tem uma casa de tijolos e até uma vendinha de bebidas. Não que a vida agora não tenha esparro – pelo contrário.
Mas, hoje, o operador de gás Edson de Jesus, 47, que também cresceu numa casa em palafitas, comemora o fato de ter alguns direitos básicos, como água, luz, saneamento básico e serviços no bairro. “Tem até wi-fi. Hoje, pelo menos a gente vive num lugar plano, não em encosta. Os ônibus chegam, tem mercadinho, tem tudo. A violência existe em todo lugar hoje. Poderia ser melhor, mas o progresso chegou. Pegar tempestade numa casa de palafitas é descomunal, é um desespero”.
Só este mês, mais de 100 pessoas receberam unidades do programa Casa da Gente, do governo do estado, no local. Além disso, obras na Avenida Suburbana, realizadas pela prefeitura desde o ano passado, melhoraram a mudança na região.
Baixa dos Sapateiros (Foto: Mariana Silva)
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10. Baixa dos Sapateiros
Ninguém tem ‘ozadia’ de chamar esse lugar por seu nome de batismo: Rua José Joaquim Seabra, que homenageia o político baiano morto em 1942. “É a Baixa dos Sapateiros, a Baixinha como o povo a trata com familiaridade”, dizia Jorge Amado.
Nunca foi lugar de barão: era o contrário da Rua Chile, na época de Jorge, e, hoje, continua sendo o oposto dos grandes shoppings cheios de marcas. Mas nada que desencoraje a design thinker Phaedra Brasil, 45, que adora garimpar por ali. “Muitas pessoas acreditam que o local é uma poluição visual, mas nós não nascemos Shopping Center, nós viemos de Água de Meninos. Quem por lá transita se vê, se reconhece e se encontra bem representado na estética da Baixa dos Sapateiros”, comenta.
GLOSSÁRIO
Arerê- Confusão
Armengue – Improviso, gambiarra; pessoa feia ou mal ajambrada
Barão – Gente rica
Barril – Situação arriscada, perigosa ou desconfortável. A depender do grau, pode ser dobrado, triplicado e assim por diante. Também pode ser alguém que fez algo difícil ou que poucas pessoas conseguiriam fazer
Botar moral – Fazer algo para conseguir respeito ou admiração
Brocar – Ser bom em algo, fazer alguma coisa bem
De hoooje! – há muito tempo
Dos tempos – há muito tempo
Esmoler – mendigo
Esparro – Situação difícil, perigosa
Massa – Legal
Na cocó – na espreita
Não é pouca merda – Não é qualquer um
Ozadia – Liberdade demais, libertinagem
Pai – Cara
Renca – Um monte
Repare – Olha só, veja aqui
Rapaz – Cara
Se amostrar – querer aparecer
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