"Gravei Zezé di Camargo, Bruno e Marrone e adoro essa música do Pablo. O quê?! Adoooro!", ri
Maria Bethânia fala ao CORREIO do show especial hoje para festejar os 466 anos de Salvador (Foto: Marina Silva)
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Maria
Bethânia nasceu em Santo Amaro e passou a maior parte de sua vida no
Rio de Janeiro. Mas, apesar de ter morado somente três anos em Salvador,
guarda memórias inesquecíveis da cidade: “Tenho lembranças mágicas,
embora tenha passado um período curto. Parecia que eu sabia que ia ficar
pouco tempo e tinha que aproveitar fundo”. Tanto se sente
soteropolitana que fez questão de estar na festa que comemora os 466
anos da cidade. Hoje, ela se apresenta no Farol da Barra, às 20h, em
show gratuito que integra o Festival da Cidade.
Com repertório baseado em seus sucessos, a
apresentação terá participação das cantoras Margareth Menezes e Mariene
de Castro, escolhidas pela anfitriã. “Salvador é uma cidade de mulheres
cantoras, que manda sempre para o mundo cantoras poderosíssimas”,
afirmou Bethânia , que conversou com o CORREIO, na última quinta, no
restaurante Amado, na Avenida Contorno, em frente para o mar e em uma
tarde de muito sol. Comemorando 50 anos de carreira, a cantora de 68
anos falou também sobre a passagem do tempo e sobre como lida com ele.
Salvador
está comemorando 466 anos e a senhora estará na festa. Apesar de ter
vivido pouco tempo na cidade, tem boas lembranças dela?
Vivi
três anos e meio em Salvador. Vivi mais em Santo Amaro e no Rio. Em São
Paulo, passei uns dois ou três anos. Vim para Salvador com uns 13 anos
e saí com uns 17. Aproveitei demais e vivi a cidade intensamente. Tenho
lembranças mágicas, embora tenha passado um período curto. Parecia que
eu sabia que ia ficar pouco tempo e tinha que aproveitar fundo. Era um
momento de efervescência cultural como nunca vi em lugar nenhum e nunca
mais presenciei. O movimento de dança, música, teatro, arquitetura...
Tinha Glauber no cinema, Dona Lina Bardi na arquitetura e nos museus. A
Escola de Teatro da Bahia com os maiores diretores e atores do país. Era
tudo de primeira linha. Ainda tinha Sante Scaldaferri, Sonia Castro,
Calá (Calazans Neto) e eu vivia com eles todos.
Apesar do pouco tempo vivendo aqui, a cidade foi importante em sua formação?
Foi
um período fundamental para mim, porque eu convivia de perto com todos
esses artistas e eu tinha apenas 13 ou 14 anos. Olha que delícia! Eu não
saía do teatro, via todas as peças e estudava os autores. Eu corria pra
ver, ficava louca, ia a todas as exposições. E Caetano tinha que me
levar pra tudo. Eu só podia sair com ele, porque só assim meus pais
deixavam. Eu tinha uns 14 anos e ele, mais ou menos, 18. Já era um
homenzinho e podia se responsabilizar pela irmã (ri).
Como tem sido ir a Santo Amaro após a morte de Dona Canô? A cidade se mantém alegre para a família?
Temos
uma certa dificuldade em frequentar Santo Amaro após a morte dela. Mas a
cidade para nós ainda tem alegria sim. Tem, tem! E, se Deus quiser, não
vamos deixar isso morrer. Esse era o grande desejo dela e de meu pai. É
a nossa terra e continua tendo a mesma dimensão afetiva e amorosa de
sempre. Levei uns dois anos sem ir lá, depois que ela morreu. Só tive
pernas para ir este ano, mas vim, fiz show e acompanhei Nossa Senhora,
carreguei e fiz minhas obrigações com muita alegria.
Atualmente, qual a importância de Santo Amaro para a senhora?
A
terra é tão importante quanto pai, mãe e irmão. Eu viajo o mundo, mas
quando fico em desconforto, fora do meu eixo, eu imagino, para me
acalmar, que vou a Santo Amaro ou a Salvador, ou a minha casa no Rio. Eu
gosto de retornar ao meu ventre, ao meu interior, onde não tem vitrine,
onde você é plena e não é ‘a cantora’.
A
senhora já gravou compositores populares, como Zezé di Camargo, e
outros mais sofisticados, como Tom Jobim. Como transita tão bem entre o
popular e o sofisticado?
Gravei
Zezé di Camargo, Bruno e Marrone e adoro essa música do Pablo. O quê?!
Adoooro! (ri). Nós somos assim, o recôncavo baiano é isso: tem um lado
nobre, dos ancestrais. Do outro lado, tem os rios mortos e degradados,
então a gente vive esse paradoxo, essa confusão, mas com muita energia. E
eu canto e leio tudo o que eu gosto.
Sua música, até nos arranjos, é marcada por uma influência do interior do país, não é?
Eu
gosto muito de viola caipira. Não é que eu a tenha ouvido muito, mas
ela me traz o som de Santo Amaro. Quando eu cheguei no Rio, tinha um
momento que me batia melancolia no fim de tarde. Nessa hora, eu ia pra
casa de Rosinha de Valença (violonista e arranjadora) e nós ficávamos
com o radinho dela ligado. E ela adorava música caipira. E ela, com uma
viola, solava fazendo umas coisas lindíssimas. Aquilo me fascinava. Era
um momentinho em que eu tinha a minha Santo Amaro. Às vezes, ouvia uma
música que nem conhecia, mas aquilo me dava uma serenidade, despertava
minha memória afetiva... Era o retrato de Santo Amaro, o quintal da casa
dos meus pais.
Por que escolheu Margareth Menezes e Mariene de Castro para participarem do show de hoje, no Farol da Barra?
Eu
faço o meu show e num momento homenageio a cidade. Nessa hora, eu não
queria estar só. Salvador é uma cidade de mulheres cantoras, que manda
sempre para o mundo cantoras poderosíssimas. Queria que todas fizessem
essa homenagem comigo e cheguei a ligar para Ivete, mas ela tava de
férias. Eu já havia gravado com Mariene e pedi a ela que reservasse uma
data. Vai ficar lindo as três vozes.
Maria Bethânia, Margareth e Mariene: juntas no palco, no Farol da Barra (Foto: Bruno Pettinelli/Divulgação)
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A senhora sempre inclui referências literárias em seus shows. O que está lendo?
Estou
lendo tudo de Clarice (Lispector). Estou relendo tudo, absolutamente
tudo dela em umas reedições novas. Já li o volume A Palavra e agora
estou lendo O Tempo, que tem cartas, artigos e outras coisas sempre
relacionadas ao tema. No meu show de 50 anos tem muita coisa dela.
Falando em tempo, como a senhora lida com o passar do tempo. Não faz questão, por exemplo, de pintar os cabelos?
Acho
bonitos os cabelos brancos e minha mãe também não pintava. O tempo tem
uma autoridade sobre nós, pobre mortais. É uma realidade e ele tem uma
autoridade, é nobre. Gosto de ver como ele lida comigo. E eu tenho que
lidar com ele numa ótima para que ele me queira, para que me preserve.
Além de consumir literatura, a senhora se arrisca também a escrever?
Gosto
muito de escrever, mas não sou escritora. Queimo tudo que escrevo e
Waly (Salomão) brigava muito comigo por isso. De vez em quando eu dizia a
ele ‘vem cá que eu vou queimar tudo hoje’. Queimo tudo, até porque
adoro o lume e porque queimar eterniza, destrói, anula aquilo que já
foi. O lume é uma renovação. Só sei escrever à mão e pela manhã.
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