A comunidade islâmica na Bahia tem cerca de 500 pessoas e a busca pela religião, principalmente por parte dos brasileiros, tem aumentado
O chamado de Salvador ressoou na região de Oxum, na Nigéria, e chegou ao sheikh Ahmad Abdul, 64 anos. Ele foi convidado em 1992 a assumir o Centro Cultural Islâmico da Bahia, em Nazaré. O espaço precisava de um líder religioso, um sheikh, e Abdul aceitou - com ressalvas. Ele veio para a capital baiana mas deixou avisado que, se não gostasse, voltaria para a Nigéria.
A primeira dificuldade foi o português, muito difícil de aprender. Dominada a língua, tudo ficou mais fácil. “Esta cidade é muito semelhante à minha. O povo é acolhedor, as pessoas se parecem, o jeito de falar, de agir, tudo faz a gente se sentir irmão”, conta.
O sheikh Ahmad Abdul nasceu na Nigéria e é o líder espiritual do
Centro Cultural Islâmico da Bahia, em Nazaré. (Foto: Angeluci Figueiredo) |
Contudo, a história exige mais precisão no parentesco citado pelo sheikh. Acontece que, em relação a cultura da qual ele vem, não seríamos irmãos, mas filhos - ou netos. Hoje, no aniversário de 466 anos de Salvador, o CORREIO reconhece uma outra paternidade da cidade: os árabes e muçulmanos.
Sobre a Nigéria, por exemplo, onde nasceu Abdul e de onde vieram os malês há cerca de 200 anos, até a comida é familiar. Lá existe o acará, que parece muito o acarajé. Já o maimae é uma versão do nosso abará. Até o caruru encontra suas origens nigerianas. Outros hábitos, como vestir branco na sexta-feira, são compartilhados entre baianos e muçulmanos (confira no infográfico).
Tawil é libanês e, após uma visita, quis morar em Salvador.
(Foto: Angeluci Figueiredo) |
Apesar da maioria cristã, Salvador tem muitas referências ao islã, seja nas ruas ou dentro das casas. O Jardim de Alah, explica o sheikh, era um dos pontos preferidos da comunidade islâmica que morava por aqui e por isso ganhou o nome. Já os terraços e varandas fazem parte da tradição arquitetônica muçulmana.
As semelhanças ajudaram Abdul a se adaptar bem em Salvador. Ele sente saudade da família nigeriana, já que é casado por lá, mas resolve viajando com frequência para o país. Não que fique sozinho no Brasil: seus irmãos casaram com brasileiras e ele já tem muitos amigos e sobrinhos que nasceram aqui.
A comunidade islâmica na Bahia tem cerca de 500 pessoas e a busca pela religião, principalmente por parte dos brasileiros, tem aumentado. O Centro Cultural Islâmico abriga a única mesquita do estado. Nos horários certos, todos se reúnem sobre os tapetes em um espaço sagrado e oram em direção à cidade de Meca, na Arábia Saudita. No mesmo lugar, ouvem as palavras do sheikh Abdul.
Zeina e Tarik mantêm a tradição árabe no Empório Arabesque.
(Foto: Angeluci Figueiredo) |
O começo - As influências árabes e muçulmanas no Brasil aconteceram de três formas: pelas mãos dos portugueses, dos povos africanos que viviam o sincretismo das culturas e dos próprios árabes.
Primeiro, recebemos a herança da herança: bem antes de pensar em colonizar as Américas, Portugal e Espanha foram domínios mouros por quase oito séculos. Isso provocou mudanças nos costumes, na arquitetura, na construção naval e na culinária (veja mais na linha do tempo).
Quando a Península Ibérica se libertou, a população já era bastante moura em seus hábitos. No Brasil, os portugueses deram continuidade a tudo que aprenderam, explica Patrícia El-moor, socióloga e pesquisadora da cultura árabe. A forma de construir as cidades, por exemplo, é pensada sob a ótica moura. Por isso, os centros históricos do país inteiro se parecem entre si, diz Cássia Magaldi, arquiteta que estuda as características da arquitetura árabe no Brasil.
Depois, a influência chegou de navio negreiro, vinda de diversos povos da África. O império Iorubá, que em sua maioria adorava os orixás, teve guerras e trocas constantes com os seguidores do Islã a partir de 1808. Em consequência, o sincretismo entre eles começou já no continente africano.
Hábitos como usar patuás para proteção, provavelmente, eram comuns às duas culturas desde a África e se mantiveram no Brasil. Nas palavras do escritor João Reis, uma projeção da história africana na história brasileira.
As peças, claro, tinham suas diferenças: os que acreditavam nos orixás misturavam a elas materiais como búzios. Já os muçulmanos escreviam trechos do Corão em árabe, explica Lisa Castillo, doutora em Letras que pesquisa a vida dos africanos libertos, incluindo os malês, responsáveis por um dos mais importantes levantes do país contra o governo português em 1835.
Nova colônia - Os avós paternos de Zeina Chalhoub, 57 anos, chegaram ao Brasil vindos do Líbano na época da primeira guerra mundial. Já os avós maternos vieram da Síria. Todos eram cristãos. O pai e a mãe de Zeina, que já eram nascidos antes de cada viagem, acabaram se conhecendo no Brasil.
As influências portuguesas e africanas deram os aspectos mouros que caracterizaram o Brasil colônia. A partir de 1860, os árabes cristãos começaram a emigrar para cá por diversos motivos, principalmente do Líbano. Na época, os libaneses cristãos eram massacrados em conflitos com os turcos.
A perseguição durou até o fim da primeira guerra mundial, em 1918, mas a emigração não parou mais. Mudou de características após o início da segunda guerra mundial, em 1945, mas permanece. Hoje o Brasil tem a maior colônia libanesa fora do Líbano no mundo, conta a socióloga Patrícia El-moor.
Brasileira criada por pais árabes, Zeina percebia as diferenças entre os costumes. Por exemplo: o pai arrotava depois de comer e isso era um sinal de bem- estar. Quando repetiu a mesma coisa na escola, foi chamada de mal-educada. Mas as semelhanças foram maiores. “Meu pai se sentia tão acolhido em Salvador que costumava dizer que aqui era o melhor lugar do mundo para viver”, lembra.
Amor atual - Alguns chegaram em terras baianas há bem menos tempo, como o libanês Antonio Tawil, 60 anos. Ele veio para Salvador em 1985, visitar um tio. Gostou tanto que casou com uma baiana, teve dois filhos e decidiu ficar.
Aqui encontrou uma cidade tão acolhedora como Beirute, onde morava, com o mesmo clima agradável e praias bonitas. Mas a grande surpresa foi o acarajé, que achou parecido com o falafel, bolinho de grão de bico frito típico dos países árabes.
Descobriu nosso prato feito com dendê por curiosidade. Observou uma baiana e quis experimentar. “O acarajé é muito parecido com o falafel. Quando provei, me devolveu direto para minha terra. Nunca mais parei de comer e hoje prefiro o acarajé (risos)”.
É possível que o falafel, prato tipicamente árabe, tenha inspirado o acarajé feito na Bahia.(Foto: Angeluci Figueiredo)
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Sabores irmãos - Sabe o cuscuz? É marroquino. Já o pastel de nata português é filho do pastel árabe. E os doces bem açucarados dos aniversários também são herança moura. Os árabes e muçulmanos influenciaram nossa culinária de dois jeitos: primeiro, os portugueses tiveram sua cozinha modificada pela dominação moura e trouxeram isso para o Brasil. Depois, os africanos que tiveram contato com os seguidores do Islã trouxeram pratos como o cuscuz, explica a socióloga Patrícia El-moor, pesquisadora de cultura árabe.
Na Bahia, conta-se que o falafel, bolinho frito de grão-de-bico, teria inspirado o acarajé. Não se tem nenhuma prova, mas pela semelhança “é possível que ele tenha sido apresentado pelos mouros aos povos africanos em algum momento entre os séculos 7 e 14”, explica Zeina Chaloub. Filha de árabes, ela e o filho Tarik iniciaram o Empório Arabesque, na Pituba, casa de produtos árabes. Como o paladar baiano também tem DNA mouro, garante que a loja é bem aceita.
Detalhe da camarinha do convento de Santa Clara do Desterro, em Nazaré, construído em 1677.(Foto: Angeluci Figueiredo)
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Paisagem árabe - Portais redondos, paredes com arabescos, inscrições em árabe que dizem “Esta é a casa de Deus, esta é a porta do céu”. Não é uma mesquita, mas a Igreja da Lapinha, na Liberdade. Construída em 1771, é toda feita ao modo mourisco - nome dado ao estilo árabe-espanhol.
Um enorme número de influências menos óbvias está espalhado pela cidade. A largura das ruas, os pátios internos das casas, azulejos decorados, chafarizes, terraços: tudo tem inspiração moura. A Igreja da Lapinha, na Liberdade, foi construído no estilo mourisco.
Até o hábito de dar às ruas nomes de ofícios, como “Rua dos Ourives” ou “Rua dos Coureiros”, é herança da organização das cidades árabes. “Eles eram a civilização mais avançada da época. Tinham conhecimento de arquitetura e passaram aos portugueses. As camarinhas, por exemplo, que fazem uma pequena torre nos telhados, estão em muitos conventos de Salvador”, explica Cássia Magaldi, arquiteta que estuda a influência árabe na cidade.
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