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sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Em um ano, 12 mil crianças foram recrutadas como soldados no Sudão do Sul

Forças do governo e milícias são acusadas pelo crime; combate vai muito além da disputa étnica, de acordo com especialista

Era para ser um dia letivo normal para alunos de uma pequena cidade do Sudão do Sul, país da região central da África. Mas enquanto os cerca de 100 estudantes de 13 anos assistiam à aula, homens armados invadiram o local e sequestraram o grupo. Uma das crianças que conseguiu escapar contou ter ficado paralisada com a ação.
Domingo: Unicef alerta para rapto de adolescentes por milícias no Sudão do Sul
Militante armado em vila do Sudão do Sul; país vive guerra civil desde 2014
Wikimedia Commons
Militante armado em vila do Sudão do Sul; país vive guerra civil desde 2014
O relato, divulgado pela BBC em outubro de 2014, não foi um testemunho atípico no país. No último domingo (22), por exemplo, um grupo armado invadiu outro colégio sul-sudanês e sequestrou outras 89 crianças, de acordo com a ONU. O crime ocorreu perto de Malakal, cidade sob o controle do governo e que tem sido palco de intensos combates entre forças rebeldes e o Exército após acusações mútuas de violar acordo de paz firmado em 2014.
"As crianças-soldado do país têm, normalmente, entre 11 e 17 anos. A maioria são rapazes, mas há relatos de garotas também que, mesmo não entrando diretamente nas batalhas, desempenham outras funções de apoio à guerra como escudos humanos ou na prostituição", explica ao iG Daniela Nascimento, especialista em Sudão do Sul da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.
Galeria de fotos: Veja países onde o estupro é usado como arma de guerra
De acordo com Daniela, o uso de crianças na guerra já era comum no país desde o conflito com o Norte, que se arrastou por mais de uma década e culminou na criação, em 8 de julho de 2011, no Sudão do Sul, conforme previa acordo de paz definido em 2005. No final desse conflito, segundo ela, mais de 3.500 crianças que atuavam diretamente no conflito armado ou desempenhavam funções relacionadas à guerra têm sido desmobilizadas e reintegradas à sociedade.
Para o norte-americano Eric Reeves, especialista em assuntos sobre o Sudão do Sul e autor do livro "Sudan is Compromising With Evil" [sem tradução para o português], "O recrutamento de crianças e adolescentes é tão comum no país quanto o rapto de mulheres e a desnutrição. A grande questão por trás desses ataques é que os crimes são resultados de uma complexa onda de violência que talvez não tenha mais como voltar atrás."
Na última semana, relatório da Human Rights Watch (HRW) apontou que tanto as facções quanto o próprio governo têm recrutado crianças como soldados nesses 14 meses de guerra civil. Ao The Guardian, Daniel Bekele, diretor da HRW na África, disse que "apesar das promessas, os dois lados continuam a recrutar e usar crianças em combate. Em Malakal, as forças do governo estão usando crianças do lado de fora do complexo da ONU."
Veja fotos de refugiados pelo mundo
'O nome dela é Rasoul. Aos 75 anos, ela foi forçada a deixar sua casa por causa da violência sectária em Myanmar', explica fotógrafo. Foto: Phil Behan/ Acnur
'O tio de Naima foi morto na Etiópia. Os pais fugiram para o Quênia como refugiados políticos e depois, mudaram para a Califórnia', diz fotógrafa. Foto: Evelyn Hockstein/ Acnur
'Assafa me disse que queria ser professora, e que queria voltar para sua casa no Mali', diz Helena Caux sobre a menina de 6 anos da foto. Foto: H. Caux/ Acnur
O fotojornalista Jason Tanner diz: 'passei quase 2 anos adiando a decisão sobre como tratar e fotografar o tema da violência sexual em conflitos.' . Foto:  J. Tanner/ Acnur
Andrew McConnell fotografou a refugiada síria Saada, 102. 'Saada é uma mulher resiliente. Perdeu 7 de 10 filhos, marido e agora, o país'. Foto: A. McConnell/Acnur
'Apesar de estar visivelmente marcada pela fome, ela (criança) se mantém graciosa', diz Frédéric Noy. Foto: Frédéric Noy/Acnur
'Após quase 1 ano registrando refugiados sírios na Turquia, Líbano, Jordânia e Iraque, finalmente testemunhei alegria', diz fotógrafo. Foto: Lynsey Addario/Acnur
'Eu me agachei na tenda improvisada de Fane, 70 anos, abrigada na República Centro-Africana. Ela falou e chorou', diz Sam Phelps. Foto: Sam Phelps/Acnur
A menina disse a um fotógrafo tatuado que o campo de refugiados é tão sujo que ela queria pegar as borboletas de seus braços e guardá-las para não sujá-las. Foto: Sebastian Rich/Acnur
O povo Rohingya, que vive no oeste de Myanmar, é considerado pela ONU uma das minorias mais perseguidas de todo o mundo. Na foto, John. Foto: Saiful Haq Omi /Acnur
'O nome dela é Rasoul. Aos 75 anos, ela foi forçada a deixar sua casa por causa da violência sectária em Myanmar', explica fotógrafo. Foto: Phil Behan/ Acnur
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Autoridades sul-sudanesas negam veementemente as acusações, dizendo que respeitam o acordo firmado em maio de 2014 onde ambas as partes envolvidas nos conflitos se comprometiam a encerrar o recrutamento de crianças. Os rebeldes não responderam às acusações. Ao todo, cerca de 12 mil crianças foram recrutadas para lutar na guerra civil do país africano que deixou ao menos 1 milhão de desalojados.  
De acordo com o Unicef, Fundo das Nações Unidas para a Infância, geralmente os sequestradores se reúnem em torno das comunidades e invadem as casas em busca das crianças. À CNN, Jonathan Veitch, representante da instituição no país, disse que as consequências desse crime podem ser irreversíveis. "As crianças estão expostas a níveis incompreensíveis de violência, perdem suas famílias e sua chance de ir para a escola", afirmou.
O atual conflito do Sudão do Sul começou em dezembro de 2013, quando as forças lideradas pelo ex-vice-presidente Riek Machar lutaram contra as tropas leais ao atual presidente Salva Kiir. Especialistas apontam que atualmente os confrontos tomaram dimensões étnicas. Daniela Nascimento, porém, discorda.
"Assim como a guerra com o Norte não foi motivada apenas religiosamente, apesar de opor cristãos e muçulmanos, o conflito atual tem uma variedade de fatores que vão muito além dessa visão simplista de conflito étnico", diz.
ONU: Violência pode ter matado milhares no Sudão do Sul

Além de soldados, crianças assumem funções de apoio à guerra, como escudos humanos e também na área da prostituição
Reprodução/Youtube
Além de soldados, crianças assumem funções de apoio à guerra, como escudos humanos e também na área da prostituição
A especialista reafirma que os problemas políticos e econômicos do país são os fatores chave para a guerra civil. Desde sua recém independência, o Sudão do Sul tem enfrentado casos massivos de corrupção e despotismo, problemas que levaram Riek Machar a incentivar uma mudança política armada. Do ponto de vista econômico, explica ela, a riqueza petrolífera do Sudão do Sul atrai muitos grupos que pretendem se firmar no poder. 
Saúde debilitada
Não bastasse a violação diária dos direitos humanos, os sul-sudaneses lidam ainda com as consequências da falta de investimento do governo em áreas básicas como o saneamento básico. Durante os quatro meses em que atuou nos campos de refugiados de Juba 3 e Tongping em Juba, capital do país, Eduardo Abby, clínico geral do Médico Sem Fronteiras (MSF), afirma ter atendido basicamente crianças com problemas como malária, diarréia e cólera.
"O acesso à saúde e ao saneamento básico são precários. O hospital público é sobrecarregado ,e apesar de existir alguns hospitais e clínicas particulares, elas atendem apenas uma pequena parcela da população", explica.
Durante todo o ano de 2014, os Médicos Sem Fronteiras realizaram 803.694 consultas no país. Os especialistas atenderam 293.400 crianças menores de 5 anos com problemas de desnutrição, enquanto outras 4,5 mil foram submetidas a tratamentos de nutrição terapêutica. Houve ainda 18.146 feridos de guerra.
"Houve diversos ataques a estruturas de saúde no país. Inclusive vários hospitais e clínicas do MSF foram saqueados ou completamente destruídos", afirma o Abby.
Eric Reeves explica que, como mais da metade da população é menor de 18 anos, a crise na saúde atinge em cheio as crianças. Há mais de 3,7 milhões de sul-sudaneses – 740 mil com menos de 5 anos – sob alto risco de insegurança alimentar no país.
"Apesar de tantos problemas, o perfil do povo sul-sudanês não é de guerra. Pelo contrário. Os sul-sudaneses são pacíficos e merecem a chance de construir um país parecido com seu verdadeiro perfil", defende o professor norte-americano.  
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